Solstício de verão, oito horas e um calor dos infernos, chego no trabalho, segurança de camisa arregaçada, funcionário de chinelo, casa da mãe Joana, entro na minha sala, ar-condicionado pifado, funcionava, mas desde hoje, desde agora, desde este exato momento, resolveu não funcionar mais, ligo o computador, descubro que tem reunião online, eu tinha te falado, Carina, lembra? Entra aí, tá começando agora, coloco os fones, tento concentrar na reunião, reunião sobre? Café? Claro, Vera, um cafezinho, né? Café… pra acordar e derreter, calor dos infernos, será que desliguei a cafeteira de casa? Acho que o ar tá funcionando, hein, sinto um sopro, uma brisa fictícia e um suor na testa, desconcentro, vou ver as mensagens, coleguinhas… um na praia, outro bebendo cerveja, de lascar, volta pra reunião, Carina, ah sim super importante essa questão mesmo, a roupa! Caramba, esqueci na máquina, a cafeteira eu desliguei, vai ficar tudo com cheiro de guarda-chuva molhado, quase na hora da vistoria, vai ser complexo ver obra nesse calor, meu Deus, esse ar não tá funcionando mesmo, ligo e desligo, calor dos infernos, ah, ótimo, hora da pausa, almoço, chego no restaurante e o ar tá quebrado também, tá de sacanagem, como sem vontade, o suco gelado refresca, não acredito que esqueci a roupa, ai ai, agora é a vistoria, vou assar, e ainda tem os terraplanistas que não acreditam em aquecimento global, vejo a obra, a poeira me envolve, suor, pó, pés incomodando, é como se os pés não pudessem respirar, vontade de tirar esse tênis e jogar ele na máquina de lavar, ainda bem que coloquei aquele talco anti-chulé, senão ia ter que ficar com eles até morrer, ser enterrada de tênis, iam dizer, ele era seu amigo inseparável, credo, volto pro escritório, retomo a reunião, reunião sobre? Calor dos infernos, sala de espera do capeta, isso aqui, como concentra nesse calor? Impossível, concordo com os encaminhamentos da reunião, assino a lista de presença, e vou pra casa, ah, não, tenho que passar na faculdade, deixar um material, entro no carro, ar-condicionado preguiçoso, anda, esfria, seu desgraçado, ai ai, refrescando l-e-n-t-a-m-e-n-t-e, saio do carro, deixo a bagaça na secretaria, acho que vou conseguir salvar a roupa, entro no carro, agora vou pra casa, passo em frente ao curso de inglês, vou renovar essa matrícula logo, eu queria muito ir pra casa, tirar esse tênis e jogar ele fora, tomar um banho, mas vou me arrepender se não parar logo nesse curso, estou passando em frente, para, Carina, vai ser melhor pra você, oi, vim fazer a matrícula do meu filho, ah, claro senhora, mas a senhora perdeu o desconto de dez por cento, como perdi o desconto? Ah, era até dia dez de dezembro e hoje são vinte e dois, droga, que merda, vixe já?! Será que paguei a conta de água desse mês? Mas o meu outro desconto tá valendo, né? Ah, sim, mas agora as prestações vão ficar mais altas, ah, fecha logo esse contrato aí e vambora, tá um calor dos infernos e quero ir pra casa, sim, senhora… não quer ler o contrato? Não, quero assinar e ir embora, entro no carro, não, não paguei a água, droga, trânsito, chego em casa, tiro o tênis contrariando todas as recomendações da OMS, abro a tampa da máquina pra alívio das roupas, tomo um banho gelado, sento no computador, agora sim com alguma dignidade e leio no grupo de WhatsApp: Carina não se manifesta, só pode estar na praia… mostrando o ombrinho.

Carina Mendes é uma carioca que rodou um pouco por aí e atualmente mora em Cabo Frio/RJ. É arquiteta e urbanista de formação, servidora pública, trabalha na área do patrimônio cultural, é professora universitária. Depois de mestrado e doutorado, decidiu navegar pela escrita criativa. Tem feito cursos, publicado minicontos, contos e crônicas em coletâneas e em seu site.
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