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crônica narrativa

Um dia de Carnaval

O solitário Armengard não é do tipo ranzinza, mas não costuma ter bom humor quando algo impede de seguir a sua rotina cotidiana. Gosta de seu canto sossegado, silencioso, harmonioso, enfim, um oásis em meio ao caos frequente de uma metrópole, como é a cidade do Rio de Janeiro. Por isso ficou aborrecido quando, ao ligar para a farmácia, foi informado de que as entregas só retornariam à normalidade após o carnaval, porque, além das ruas fechadas, o número de assaltos aumentava demasiadamente nesse período.

— Mas, eu preciso dos meus remédios.
— Sinto muito, mas infelizmente o senhor terá que vir buscar ou pedir que alguém venha.

Antes de sair de casa, Armengard pragueja contra todas as farmácias, entregadores e foliões. Assim que abre a porta o som de um bloco de rua invade seus ouvidos como verdadeiros aguilhões, logo aos primeiros passos na calçada, braços surgem de todos os lados, empurrando-o para o meio da rua, onde um carro de som berra ao ritmo de marchinhas clássicas, acompanhadas por alucinados gritos de euforia dos carnavalescos. Alguns mais ousados bolinavam Armengard em todas as partes de seu corpo.

O pobre alienado tenta se defender como pode das investidas mais ousadas, quando pensou que conseguiu se livrar da turba ensandecida, o banho de um líquido fedorento e suspeito escorre desde sua cabeça até os pés. A loucura parecia não ter fim, pois uma criatura de sexo indefinível o agarra por trás e sequestra-lhe um beijo violento, quase arrancando um pedaço de seus lábios.

Nunca, em toda sua vida, Armengard passou por uma situação tão conturbada, levou um tempo para assimilar a realidade, mas logo retomou a consciência e enfrentou as intempéries com coragem e virilidade.

Não demorou muito para chegar na farmácia, mas a porta de aço estava arriada, Armengard se recusou a aceitar que seu sacrifício seria em vão, bateu vigorosamente na porta, quase a derrubando. A ação foi seguida por outros fanfarrões e logo as batidas seguiram o ritmo dos sambas enredo que ecoavam pelas ruas. A portinhola abre, um par de olhos esbugalhados aparece.

— Rapaz, eu preciso desses remédios aqui, por favor.
Armengard entrega o bilhete. A portinhola fecha abruptamente. Do lado de dentro ecoam algumas batidas contra a porta que mais parecem… bem, acho que não precisamos dizer o que parecem. O par de olhos retornam após alguns instantes, Armengard pensa que receberá seus remédios, porém vem uma nota fiscal com o valor da compra e uma voz, um pouco rouca demais para alguém que deveria estar sóbrio, continuou o processo.
— O cartão tem aproximação?
— Vou pagar em dinheiro. — Armengard responde taxativo. Tateia os bolsos, o pânico se instala no homem.
— Então? — os olhos injetados de vermelhidão estavam impacientes para voltar às atividades.
— Fui assaltado.

Do lado de dentro da farmácia, uma voz feminina reclama, “amor, vem logo.” Armengard ia argumentar, mas os impacientes olhos inchados não esperam as lamentações, a portinhola torna a fechar.

Extremamente frustrado, Armengard retorna para casa, quando uma batida policial o arrebata jogando-o no camburão junto com outros arruaceiros, seus gritos de protestos são abafados por tantos outros. Na delegacia, o homem é fichado, mas uma alma sóbria reconhece que Armengard não tem o perfil da população nativa da época, ele é separado do restante e goza de algum privilégio no banco de madeira da delegacia.

Remoendo toda sorte nessa pequena aventura, Armengard reforça sua disposição de se isolar do mundo, sobretudo nesse período do ano.

10 respostas em “Um dia de Carnaval”

Kkkk, coitado do Armengard, pelos detalhes acho que o escritor já viveu essa situação. Quem sai de casa no carnaval sabe da loucura de sair na rua e da de cara com um bloco. Parabéns Marcelo, exelente.

Odeio carnaval, aqui em frente ta passando um monte de maconheiros bêbados gritando como se estivessem no cio ou manicômio, situação insuportável. Eu me solidarizo com o Armengard.

Caramba coitado dele não gosta de carnaval como eu também não gosto mas lhe faltou malícia pois numa aglomeração temos que ter maldade pois mãos bobas nos toma o que é nosso e como se não bastasse ainda ser confundido como arruaceiro coitado. Bela história retratando o que são esses momentos de carnaval.

Tenho pena de Armengard. Quase me solidarizo com ele, afinal, não gosto muito de Carnaval, folia e barulhos. Aliás, estes mesmos barulhos me atormentam de forma excessiva e quebram por completo minha rotina pacata onde faço as mesmas coisas por puro prazer.

Digo mais, me identifico muito com ele em todas estas situações. Só não quero acabar como ele numa delegacia, é claro.

Muito boa tua narrativa. Me diverti muito.

Até a próxima.

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