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Desrealização

De pé na farmácia, meu corpo reclama do cansaço. Depois de meses inerte, ele agora arde para me lembrar de que existe, que pulsa, criando canções através de espasmos musculares assombrosos. Quando minha senha é chamada no balcão, recito por nome o antidepressivo, o ansiolítico e o antipsicótico em suas diferentes dosagens. A atendente digita um por um no computador e dá início a um longo processo de verificação de receitas, preenchimento de formulários, impressão de papéis, assinaturas rabiscadas. 

Olho ao redor e suspiro agarrando os braços. É delicado estar em qualquer lugar quando se é ferida aberta, mas em público é pior; existe o medo de experimentar uma crise, despencar ao chão e ninguém saber o seu nome. Assim, evito deixar a casa, sendo a busca pelos remédios um dos episódios inevitáveis. Toda vez que as cartelas terminam, lá estou eu ocupando pelo menos meia hora do dia em frente ao balcão. E se a vontade de falar já é naturalmente escassa, as interações com estranhos, por mais banais que sejam, se tornam insuportáveis. Enquanto enuncio números e soletro sobrenomes, penso em como seria bom morrer.

Um ano de terapia, sete meses de tratamento psiquiátrico e seis remédios diferentes já passaram por mim. Durante esse tempo, cessei todas as minhas atividades porque já não conseguia carregar nada até o final do dia, e nenhum tipo de raciocínio lógico impediu o furacão após o diagnóstico. Estou cheia de sentimentos sobre os meus sentimentos, e nada disso faz bem. Me encontrar nessa pausa, no silêncio, quando já estive a mundos de distância, é árduo e assustador. Paga-se um preço por visitar as esquinas mais escuras da mente diariamente; sou outra pessoa, difícil de reconhecer, e o tratamento é um dos principais responsáveis. Ele me exaure até os ossos, e parece ser a única coisa que faço estes dias: tomar água, marcar consultas e tragar remédios. Não sobra energia pra muito mais.


Li que o transtorno depressivo é uma espécie de hibernação psíquica, parar e ruminar sendo sua única exigência. Suas origens e porquês só são desvendados através de muito esforço e paciência para encarar excruciantes sessões de análise. Por acidente ou destino, entrei em hibernação quando o mundo entrou em isolamento, o que simultaneamente dificultou e facilitou as coisas. Dentro da esfera do copo meio vazio, muito do que eu poderia fazer para equilibrar os hormônios da felicidade e da tristeza está proibido e inacessível. O que me resta agora é passear pelos noventa metros quadrados do apartamento e mirar paredes vazias como quem percorre muitos quilômetros de um museu: se você for exilada em uma terra, vá explorá-la.

3 respostas em “Desrealização”

Que potente, Dayanne. Enquanto a semente está na terra escura e fria, encontra ali as forças para germinar e crescer. No tempo certo, tudo floresce. Confie no processo.

Qualquer transtorno é terrível. O depressivo é ainda pior, porque tu te tornas refém da tua própria mente.

Por mais que terapias e remédios mascarem as coisas por um tempo, tudo vem a tona na hora mais complicada. É brabo.

Uma crônica pra gente refletir muito não só sobre a depressão como todos os outros problemas psicológicos pra botar na cabeça das pessoas que não é uma frescura e que tudo passa.

Mas não passa.

Muito boa crônica. E fico honrado por conhecer uma “compatriota” de UFPEL. No meu caso, formei-me em História a exatos 20 anos atrás. Provavelmente conheceu o Campus das Ciências Humanas. Na minha época, o Campus ainda estava em formação.

Bom trabalho. Um abraço.

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