Nunca perguntei, mas imagino que ele tivesse uns 75 anos. Era médico e a profissão logo se revelava pelas roupas. Estava sempre de camisa e calça brancas, o que já não é tão comum na profissão hoje em dia. Mas o que o tornava único era que completava a vestimenta com cinto, sapatos e meias igualmente brancos. Como era gordinho, de cabelos também brancos, quando vinha ao longe me lembrava um boneco de neve…
Foi num encontro casual no corredor que o conheci. Era o meu novo vizinho de porta. Ele e a esposa, D. Celina, uma senhora de boa aparência, tranquila, educada, de pouco falar e com uma expressão de bondade que não lhe saía do rosto.
Ele era muito simpático e sempre que o encontrava tínhamos uma conversa alegre e interessante. Sempre achei que ter vizinho médico é melhor que muito plano de saúde por aí. Felizmente, nunca precisei incomodá-lo com questões de saúde, mas precisei importuná-lo com outra coisa.
Certa vez, ao sair de casa com minha mulher numa sexta-feira à noite, batemos a porta de casa com a chave por dentro. É aquele momento do frio na barriga. Um olha para o outro sem saber direito o que pensar ou o que fazer. Vem logo a vontade de acusar. Já experientes, com mais de dez anos de casados, resolvemos adotar o plural “esquecemos” e deixar de lado a caça da culpa, que só faria piorar a situação. Casamento é assim, já não são duas, mas uma só chave…
Ficamos ali matutando sobre alternativas. A mais óbvia seria partir em busca de um chaveiro, o que à noite era praticamente impossível na nossa região. Sendo sexta-feira, a dificuldade se estenderia pelo final de semana e o mais provável era conseguirmos um profissional apenas na segunda-feira. Ou seja, três diárias de hotel, sem roupas limpas nem escova de dentes, além de uma despesa que faria um rombo no apertado orçamento doméstico.
— Precisamos pensar em outras possibilidades — sugeriu, minha mulher.
— Vamos arrombar! — decidi, com candura e estupidez.
— Perfeito. Depois montamos uma barricada atrás da porta e não saímos mais de casa até segunda-feira. Aí, além do chaveiro, precisaremos chamar um marceneiro e comprar uma porta nova. É possível que fique mais caro que o hotel…
— Hummmmm.
— E se entrarmos pela casa do vizinho, através da varanda?
— Isso mesmo. Foi ótima essa “nossa” ideia! — exclamei, adotando novamente o plural conciliador.
Animado, toquei a campainha do boneco de neve.
Ele mesmo atendeu a porta. Provavelmente havia chegado a pouco, pois ainda estava com a fantasia de doutor. Explicamos o ocorrido e imediatamente nos fez entrar, esbanjando gentileza e boa vontade. Logo aderiu à empreitada e disse que ajudaria nesta passagem entre as varandas, para que fosse feita em máxima segurança.
Na sala, diante de uma mesa com petiscos, queijos, pães e uma bela garrafa de vinho, D. Celina nos cumprimentou com um leve sorriso e convidou a participarmos da refeição festiva do casal numa sexta-feira à noite. Que maravilha. Tantos anos de casados e curtindo com entusiasmo a companhia um do outro. O cenário perfeito de um lar feliz. Era assim que eu queria chegar às bodas de ouro!
Agradecemos e fomos direto para a varanda avaliar a melhor forma de realizar nosso intento. Foi mais fácil do que parecia. Com a ajuda do vizinho, em poucos segundos eu já estava novamente dentro de casa, tirando aquela maldita chave espetada na fechadura e encerrando o episódio, que no fim, serviu para nos aproximar mais dos vizinhos.
Daí em diante, nossas conversas demoravam um pouco mais e estávamos no caminho de sermos promovidos de vizinhos a amigos. Logo ficamos sabendo que, recentemente, haviam festejado 51 anos de casados, tinham filhos e netos. Ele gostava tanto da profissão que nem pensava em parar de trabalhar. D. Celina, por temperamento, mantinha-se reservada, mas sempre afável e amistosa. Bela família, belos vizinhos. Era assim que eu queria chegar às bodas de ouro!
Até que um dia, percebemos que já não os encontrávamos há algum tempo. Há duas semanas, pelo menos. O apartamento mantinha-se silencioso e a alegria do boneco de neve havia desaparecido. Fiquei mais atento. Passei a corujar pela mesma varanda que nos aproximou e notei as luzes sempre apagadas, noites consecutivas.
Era estranho deixarem o apartamento sem se despedir. Bastaria tocar a campainha para dar um adeus. Veio a certeza de que algo ocorrera, mas não conhecíamos os filhos ou outros parentes.
Mais alguns dias e resolvi perguntar ao porteiro, mas também não tinha qualquer notícia. Ora, aquilo que um porteiro não sabe num prédio, ninguém mais sabe…
Permaneci intrigado, porém nada havia a ser feito. Vida que segue.
Voltando do trabalho algumas semanas depois, saltei do elevador e me deparei com a D. Celina no corredor. Estava irreconhecível. Caminhando lentamente, olhar cabisbaixo, ombros caídos e um ar de tristeza contagiante.
Ao lado, uma jovem, que apresentou como sua filha. Em poucas palavras e em tom muito baixo, disse que havia passado uns dias na casa da filha e agora estava de volta. Nada mais disse e ensaiou continuar em seu trajeto.
Fiquei inconformado. Eu precisava saber do meu amigo branquinho. Temi a resposta, mas precisava correr o risco, quase certo, de ser constrangedor.
Tomei coragem e perguntei por ele. Ela, com o olhar úmido, disse apenas em voz baixa:
— Ele foi embora. Eu não entendi. Resolveu ir embora…
Foi um choque. Sem saber o que dizer me despedi com o coração partido de conhecer o drama que aquela senhora vivia. Ela seguiu pelo corredor, apoiada pela filha no caminhar e em tudo mais na vida.
Até hoje não conheci outro caso assim.
Como me enganei no julgamento sobre a felicidade alheia. Achei que era caso de amor, era ocaso.
Eu não sabia que ouro também enferruja…

Fui engenheiro, sou católico e estou recém-casado há mais de 40 anos. Moro no Rio de Janeiro e há poucos anos parei de trabalhar por dinheiro, o que alguns estranhamente chamam de… aposentadoria. Ler, viajar e cozinhar estão entre as minhas atividades preferidas, além das longas caminhadas diárias. Música, filmes, trabalhos na igreja e escrever crônicas, completam a descrição do cargo que atualmente ocupo.