Dia desses eu estava no Uber — o terceiro do dia. Cansadona, imagino que ele também, ambos calados o trajeto quase todo. Senti a solidão do nosso trabalho. Eu, servidora pública, passo o dia buscando a funcionalidade das palavras no teclado — preciso traduzir a lei para a vida prática —, são horas escrevendo despachos administrativos carentes de poesia. Já ele, motorista de Uber, passa o dia lidando com a delícia que é o trânsito de uma capital, buscando atalhos pra fugir do engarrafamento, buscando ainda acreditar na gentileza quando alguém o corta sem pedir licença. Penso nos nossos ofícios, nos silêncios que acompanham nosso fazer e no quanto repetir esses atos nos distancia de nós mesmos.
Vez ou outra tenho um lapso de lucidez, como um tiro certeiro de interrogações, que explodem na minha cabeça questionando só tudo. Não apenas o que estamos fazendo, mas sobretudo como. Podemos dar um bom dia olhando no olho ou ir comer sozinha com as notificações do Instagram, decidir passar as férias arrumando o armário ou embarcar numa excursão com desconhecidos, podemos ainda aceitar a chuva que apareceu no caminho pra casa ou fechar a cara porque o tempo fechou. É o jeito de viver que dá o tempero.
Normalmente esses lapsos vêm em situação de encaixotamento. Como quando estou no meu nicho de trabalho, dividido por paredinhas; uma caixinha dentro da sala, numa caixinha dentro do prédio, que junto com outros prédios formam um cenário monocromático de cidade. A rotina de entrar nas caixinhas desafeta (de retirar o afeto, com a devida licença poética) o cotidiano. Sigo a vida em passos mornos até as interrogações chegarem à galope na minha cabeça e ocuparem um grande espaço antes ocupado por listas de afazeres da casa, trabalho, sobrevivência – tijolinhos que o cotidiano tinge facilmente de uma cor bem neutra, que se chamaria Tédio se fosse vendida pela Coral ou pela Suvinil.
Quantas pessoas, nesse prédio em que trabalho, passam oito horas sem sentir algo além dos dedos no teclado? São pessoas que estão a uma distância breve entre si. Mas pra saber do outro, sentir o outro, olhar pro outro, antes é preciso se sentir e se olhar. É preciso se apropriar de quem você é, do que gosta, do que faz sentido. Nessas horas me pergunto como posso ser eu se o trabalho quer de mim a função, mas dispensa a pessoa. Somos um corpo que pulsa, um rio vermelho de ritmo, suor, sorriso, choro. Somos muita, muita coisa. Estamos aqui encaixotados quase o dia inteiro. Ou dirigindo um carro trazendo e levando pessoas pra caixinha delas o dia inteiro. Ou tentando vender uma TV, ou passando o dia registrando código de barras, sem prazer no ofício. Sem sentir o bico do peito que arrepiou com o vento, sem perceber o perfume novo da colega, sem alongar o corpo ou pensar que a parede da frente poderia ser rosa ao invés de branco gelo.
O caminho estava tranquilo, até que o motorista buzinou impaciente quando alguém fechou o cruzamento. Levantei o olhar e vi uma folha, sozinha, pendurada no interruptor de luz do teto do carro. Perguntei:
— É uma folha de louro?
Ele, assustado, quase parou o carro, sem entender a pergunta. Repeti e ele negou, era uma folha qualquer que caiu no colo dele há alguns dias. Um senhor que catou uma dose de poesia pra beber aos pouquinhos, pensei. Quis saber o porquê de ele a ter guardado, se tinha algum motivo especial. Ele respondeu que achou muita coincidência uma folha cair logo no colo dele e vai esperar ela secar. Já estava há três semanas ali.
Recobrei a consciência: somos gente. Vi ternura num lugar que parecia oco. O rodopiar do relógio, o sinal do aplicativo tocando, o responder o chefe uma, duas, dez vezes por Whatsapp, foi invadido por uma folha que caiu jus-ta-men-te no colo dele, olha que coincidência! Ri das palavras que ele usou — tudo é mesmo uma grande coincidência. A gente inventa a pausa e quebra o trânsito, o teclado, o código de barras.
Ainda existe poesia.
Cearense nascida e criada na beira do mar de Fortaleza, hoje mora em Belém, perto da floresta. Escreve o pequenininho, o cotidiano bobo, o que a vista alcança nas paisagens de dentro.
4 respostas em “Ainda existe poesia”
Que linda crônica poética!
A poesia é uma música que toca em silêncio. Tem de ter ouvidos de ouvir.
Lindo de se ler e sentir!
Tive a sorte de ler essas palavras antes delas entrarem nessa caixinha virtual. A poesia existe sim (e persiste). Salve, Sú!