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Afetos e borras

Quando criança, aprendi a ler a borra do café. Minha avó me ensinou, arte que aprendera com a sua mãe e esta, por sua vez, aprendera de sua gente.

Claro, como moleque, lia mais por chalaça que por segurança no dom premonitório. Ainda de garganta quente, esfumaçando pelos poros, língua dilatada do café da tarde quentinho, saía a adivinhar mundos outros, outros universos, no fundo da xícara laqueada.

Minha avó então dizia, depois de um sopapo enternecido: moleque, só arte…

Ao contrário do que dizem, nos trópicos dos trópicos, isto é, no Norte, mais precisamente em Belém do Pará, o café obteve o princípio de sua brasilidade e fincou pé em nossos hábitos mais inconscientes.

Se se está na época boa, o dia já começa cedinho com um cafezinho encorpado com pupunha cozida. Depois que vem açaí, peixe, cupuaçu e o que valha. Se tudo der certo, ainda pela tarde, depois da chuviscada ou do temporal, todos acorrem às padarias. A merenda paraense é pão com café; pão careca de preferência, molhado no café da avó às cinco da tarde.

Coisa esquisita é o beber aquele cafezinho suarento em plena quentura amazônica, seja no mormaço, seja na inclemência. Alguns diriam que somos loucos, febris, ardentes, inflamados. Em São Paulo, em Minas, o café aquece da friagem, sustenta na Serra, atiça na cidade. O que ele faria entre amazônidas?

Aqui ele acende o diabo do sabor. Aqui bebe-se por pura teimosia de gosto: ao pescador, lhe acende o pavio para enfrentar o mar; ao motorista, desperta-lhe as faculdades para derrotar o trânsito (que dá no mesmo, é um mar de concreto); à diarista, talvez seja o único sumo que lhe irá sustentar a estrutura, até o almoço.

Quando gitinho (“criança”, no dicionário nortista) cansei de colocar farinha de tapioca no café. Aquela neve caindo nas trevas fumegantes era uma verdadeira liturgia… Quando misturado ao líquido precioso, tornava-se corpulento, consistente, pesado de delícias.

Mais do que paladares, aquelas brumas que se desenhavam por sobre o bule de minha avó ligavam-nos como família. Todos reunidos em torno dos sortilégios da cafeomancia. O desejo de serem lidos, não por curiosidades vulgares, mas por devoção aos mais velhos, estes sim, entendedores da gramática do tempo.

E o tempo parava. Se não parava, pelo menos condessava-se no tempo em que o café conservava o seu calor. As horas arredias – “horas mortas”, diria a minha avó –  desabariam em nossas cabeças de inopino e eu, ainda menino, iria para cama a ficar ouvindo o “zunzunzun” das conversas sussurradas de adultos, entrecortadas a cada gole do café que rescendia. Assim, adormecido sobre camas, redes, sofás e embalado por odores, sonhava com sei lá que caprichos de criança.

E nunca saberíamos dizer se nossas vidas seguiram os rumos dos vaticínios de nossa vó ou se eram os vaticínios que se adaptavam às nossas rotas. Nossas biografias e os desejos dela para nossas vidas se embaralharam, a tal ponto, que não nos permitia saber até onde ia nossa liberdade e até onde estávamos predestinados a ser o que somos.

A borra de café em que ela nos lia, no entanto, foi injusta, se é que se pode culpar o instrumento pela causa que lhe move: não nos avisou de que nossa velhinha borralheira nos deixaria de súbito. Se ela o leu, no entanto, não nos avisou, que com a maturidade acumulam-se os segredos.

A única vez que senti o café amargoso, não por estar amargo, mas por estar penoso, foi no velório de minha avó. Não conseguia bebê-lo, eis o fato. O pó pungente coçava-me a garganta ressequida de choros engolidos. Ao mesmo tempo sentia a ira cativa dos corações pesarosos.

Com raiva, verti o café de uma golada, sem prazer ou sede, mas por ódio. Olhei o desenho que se formara no fundo da xícara: eu não tinha o dom do vaticínio, já o sabem, mas juro-vos que vi minha imagem de criança, sentada à mesa com ela, tão terna a tocar-me a cabeça.

 Queria aquele café, de família, de afeto, de amor, não este de cemitério. Desde então, procuro a minha avó, em cada xícara…entre afetos e borras.

10 respostas em “Afetos e borras”

que lindeza dolorosa, raphael. fiquei curiosa sobre como é feito o café nos trópicos dos trópicos para que dê a possibilidade de habilidades como essas. a beleza presente nessa dor que eu digo, é ter um amor tão denso como o café que a marca.

Tocante história, o saudosismo provocado pela bebida mais popular para os brasileiros é algo inerente a nossa gente. Parabéns pelo talento e sensibilidade.

Acho o café traz consigo mesmo esse sentimento de nostalgia, nostalgia de um tempo em que conversávamos de manhã cedo com nossos avós. Hoje tenho a minha mãe pra me acompanhar no meu, mas sei que lá na frente, vou sentir o que sinto agora com a minha abuelita 😕.
Parabéns, Rafika!

Nossa Rafael parecia que eu estava mergulhando nessa história, me senti dentro do filme que você contou, até chorei no final lembrando da minha vó que já se foi também. Parabéns e sucesso.

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