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A normalidade que nos condena

Durante a pandemia, o debate sobre o futuro se concentrou entre o novo normal e o retorno à normalidade. Para o primeiro grupo, as profecias se conectavam com o eterno cenário pandêmico, o virtual como ambiente de trabalho, e o isolamento dado como perpétuo. O segundo grupo apontava a epidemia de Covid-19 como passageira e o isolamento transitório.

O novo normal foi vencido pela ciência, por estruturas sociais cansadas do isolamento e pela incômoda relação entre a máquina e o humano. E a sonhada normalidade de antes ocupou o espaço de forma sorrateira. 

A normalidade de antes, já problemática, tem se assentado em um cenário ainda mais desolador de crise social e política caracterizadas pelo acentuado deterioramento dos pactos de direitos e de cidadania e instalação de  uma nova configuração de relações exploratórias e intensificação da desigualdade. Era essa a normalidade que estávamos esperando? O que é normal em uma sociedade que se acostumou com o absurdo?

Enquanto escrevo, no fundo de uma biblioteca universitária, as pessoas transitam tranquilas, máscaras não vejo mais. Os trabalhadores terceirizados continuam inviabilizados.

Se o novo normal não prevaleceu, o retorno à normalidade nos condenou. A normalidade sempre foi o problema.

Enquanto escrevo, um semelhante está sendo morto pela mescla de intolerância e ódio, falta de políticas públicas e fundamentalismo religioso. Somos o país que mais mata a população LGBTQIA+ no mundo.

Enquanto escrevo, uma mulher a cada seis horas é morta pelo simples fato de ser mulher. Já nem mais nos sensibilizamos com a morte, são tantas estampadas nos noticiários que nos afogamos no bombardeio de tantas informações.

Enquanto escrevo, mais uma tragédia ocorre em uma escola/creche no Brasil. Quatro crianças mortas e um país que não sabe qual a solução para tantas barbaridades. Hoje Blumenau (2023), mas já passamos por Suzano (2019), Medianeira (2018), Janaúba (2017), Goiânia (2017), João Pessoa (2012), São Caetano do Sul (2011), Realengo (2011), entre outros mais.

A pandemia e o isolamento não nos tornaram melhores. Apenas três anos após a Covid-19 assolar o mundo, uma horda de fanáticos de extrema-direita e terroristas invadiram Brasília e destruíram representações dos três poderes da União com o objetivo de romper com o pacto democrático, com o apoio de fortes representações militares, setores agro empresariais e líderes neopentecostais.

Poderíamos ter saído da pandemia mais solidários e tolerantes, mas não. Saímos mais raivosos e com o alvo do ódio apontado no próximo, o outro se transformou em nosso inimigo. Em um país ainda marcado pela forte desigualdade de classes e racismo com o agravante genocídio da população negra promovido pelo Estado, o nosso futuro pós-pandêmico deveria ser costurado com novas linhas de humanidade, solidariedade e compaixão.

Nosso passado, tão presente e revivido com nostalgia e reciclado através de ondas autoritárias que de vez em quando ousam pousar no grande prato de sopa chamado Brasil, não deveria ter mais espaço em um território com um povo tão plural como o nosso. Nossa normalidade, autoritária, elitista e escravocrata, sempre foi o problema. Que busquemos o anormal, o novo, o utópico, aquilo que nunca vivenciamos. Não há mais lugar para tantos passados. A gestação de um futuro composto pela solidariedade, novos (reais) valores democráticos e o pacto de não violência é urgente.

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