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Um rio dentro de nós

Desculpem a demora na crônica deste mês, mas essa semana viajei para Cametá, cidade de aproximadamente 140.000 habitantes, localizada no nordeste paraense, à beira do Rio Tocantins: uma viagem no tempo e no espaço.

Existem lugares assim, que nos lançam numa espécie de encruzilhada temporal, revolvendo poeira, memória e imaginação. 

Não quero, claro, entrar nos termos da já carcomida dicotomia: “atraso” versus “progresso”. Penso, sinceramente, que existem múltiplas contemporaneidades em nosso tempo, que se atravessam e se reúnem em um ponto único, passageiro e contraditório — como um Aleph borgiano — , não sendo possível valorar essa complexidade de maneira tão binária. 

Cametá pode ser considerada uma cidade enfeitada dessas contradições espaço-temporais, seja em seus pavimentos que opõem asfalto e ladrilho; em suas casas funcionais ladeadas por arquiteturas do século XIX; ou em seus habitantes que conseguem reunir hábitos “modernos” a outros que nos remetem à tempos imemoriais.

Ao passear, no cair da noite, pela cidade, por exemplo, ainda é possível ver famílias sentadas à porta de suas casas, entretecendo conversas animadas, apenas interrompidas pela brisa soprada do rio; ou pracinhas carregadas de passantes, templo de namoricos, boêmios ou fiéis que se dirigem à igreja secular, sob o badalo dos sinos.

Eis um hábito cada vez mais raro nas grandes cidades, em que o isolamento e o insulamento tem se tornado a regra de nossas convivências, permeada pelo medo, pela desconfiança do outro e pelo apartamento como padrão de ser e de morar.

Em Cametá paira um cheiro de família, de boas vindas, de mesa farta e segurança no porvir. Lá, o tempo produtivo também é tensionado e uma tradição perdura, mesmo que sob a pressão cotidiana das exigências do mercado: a sesta sagrada de todos os dias.

Mesmo eu, forasteiro, fui capturado pelo peso do sono que nos embala em seus braços no pós-almoço. É impossível resistir. Algo acontece nesse momento: o Sol fervilha o juízo, o rio marulha suave, e um encantamento cai sobre a cidade, que se apaga.

Alguns atribuem esse torpor ao clima amazônico, ao açaí com farinha baguda, que suga as energias viscerais, à alguma preguiça inata do povo nortista — caso cultive esse preconceito que vem da época da Colônia. 

Gosto de pensar, porém, que esse é um hábito ancestral, herdado por gente que nunca precisou bater ponto ou se preocupar com boletos, mas que vivia de acordo com o regime da natureza, ricos de tempo, embalados no remanso do rio, na costura de dias menos afoitos. 

Às vezes, quando não me recolhia no hotel, andarilhava, nessas horas, por uma cidade-fantasma, sonâmbula, como uma cobra de “bubuia”, — conforme dicionário nortista, “descansada, preguiçosa” —, de barriga cheia, sem poder deixar de invejar os habitantes um pouquinho, e lamentar um tempo perdido em que fui assim também, mais cuidadoso com os meus dias e minhas relações.

Hoje, na “cidade grande”, somos tragados por um tempo de acontecimentos voláteis e sucessivos, em escala global, potencializados pela internet. Nossas casas, quando muito, apenas servem para hospedar, não mais para reunir em torno da mesa e festejar a dramaticidade dos encontros.

Parafraseando o saudoso Nêgo Bispo, que nos deixou recentemente: nós é que somos pobres nas metrópoles, não eles, nas beiras dos rios, nos vilarejos de “fins de mundo”, que cultivam o espaço em que habitam, adornando-o com seres vivos e afetos.    

Assim ainda resiste Cametá, embora muita coisa já tenha mudado, dizem os moradores, também já sentindo a voragem de um estilo de vida que agoniza.

Quando o Sol minguava, a cidade voltava a fluir, ensinando que também temos um rio dentro de nós, e que temos que aprender com esse rio a seguir o caminho inexorável, sem pressa, angústia e desassossego.

Se esse rio usasse as palavras humanas, talvez dissesse, no fuxico da máre: “Pra que ansiedade, sumano? No fim e ao cabo, todos desaguaremos no Oceano Final…”.

5 respostas em “Um rio dentro de nós”

Retrata uma realidade de contradições, entre o passado e o contemporâneo, que vivida é levada pelos movimentos do Rio em momentos calmos e outros agitados . Muito interessante. gostei!!!

Ótimo texto, expressou exatamente o que venho sentindo nos últimos dias e que eu precisava ler hoje. Obrigado por ter escrito. Entender o ritmo do meu rio interno nem sempre é tarefa fácil pra mim. Abraço!

Como diz o velho ditado: “deixe o rio correr de acordo com seu ritmo”.

As vezes, o corre-corre das medias e grandes cidades tira a possibilidade de descansar de verdade sem preocupações nem neuras.

Que bom que ainda existem cidades calmas e pacatas neste país onde ainda podemos vagar por aí.

Meu rio já correu muito e foi poluído por coisas ruins. Só agora é que finalmente encontrei um lugar pra curtir minhas sestas. (Sim, não consigo imaginar-me sem uma bela sesta depois do almoço).

Pois é, meu amigo. Valeu a espera. Um bom trabalho.

Até a próxima e um Feliz 2024.

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