Para Milo,
aquele que quando estava no planeta tinha patas
e agora que não existe além de em mim, tem não asas, mas palavras.
Cães, como os humanos, choram de alegria e também de tristeza. Cães, embora falem outro idioma (o não-dito, o expressado) sentem fome, frio, dor e tudo que também quando acontece aos humanos, causa sofrimento. Cães possuem personalidades distintas, assim como os humanos, mas se diferem da humanidade quando não são além de cães. Quando, ao contrário dos homens, completa e inevitavelmente não passam daquilo que já nasceram sendo: leais, amorosos, detentores de rabos e orelhas sensíveis.
A morte da Baleia em Vidas Secas (que sempre me faz chorar como fez agora que precisei reler para isto escrever) é terrível não apenas porque Baleia era uma vida que secou, mas principalmente porque Baleia não sabia dizer que estava secando. Baleia não sabia nem podia expressar que, como eles, ela também estava sendo uma arvore que deixava cair de si suas folhas, suas possibilidades, a cada dificuldade na estrada. Baleia estava morrendo e acima de tudo não sabia do que se tratava o verbo. A família sabia, Fabiano sabia. Baleia só sabia sentir todo o sofrimento sem entender o porquê ou ter como obter alguma esperança para o fim do mesmo.
O Menino Mais Velho não seria capaz de agir com a misericórdia que Fabiano possuíra, tampouco o Menino Mais Novo, e apesar da ótima sensação de vai passar que há para eles na história, nada passou para a cadela. Os gritos dos Meninos mostram uma segunda morte, naquele sertão em paralelo com os agonizantes últimos momentos de Baleia, também definhava a falsa percepção de eternidade das coisas que temos na infância. Porém, se o morrer dessa ingenuidade se dá no momento em que se encontra com a maldade (sendo ela pura ou ocasionada pela situação, talvez até mesmo em formato de outro sentir) nunca fomos ingênuos se somos maus por e com nós mesmos (individualmente e como sociedade). Mas, pelos meninos, pela minha xará e principalmente por Fabiano, posso afirmar que algo como um tesouro pode se manter, algo há de se manter.
Em 1919, Lima Barreto escreveu sobre um meio de extermínio que eram as carrocinhas, funcionavam para levar a fins dolorosos como até mesmo por pauladas, os cães (e os gatos) que tinham a infelicidade de serem laçados nas ruas. A doçura em ter o impulso por proteger esses animais das mesmas, segundo ele, pertencia as mulheres, mas não apenas pelo raciocínio em perceber que todos os seres vivos merecem viver, mas por terem um dever interno. Como que algo já nascido nelas.
“Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos. Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade – o Amor. São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa. Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães. A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em acoitá-los.” –
Lima Barreto em A carroça dos cachorros, (magnália) 20-09-1919.
Lima, você errou não apenas quando disse que a lei tem o direito de persegui-los, ou quando entrelaçou o amor a utilidade, mas principalmente quando reservou a bondade desesperada ás mulheres. Os “depositários por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade” são todos os humanos quando, claro, deixam-se ser aquilo que já nasceram sendo: humanos.
Os gatos, animais de pouco protagonismo (na literatura por escolha deles, mas não na minha vida que tenho quatro), companhias de forte presença no imaginário com tantas lendas e mitos e por tantos anos perseguidos, não ficam de fora nessa crônica, não há como quando são o motivo pelo qual o silêncio se faz tão feroz, quando se tornam o espelho do que compartilhamos: um alheamento.
“Conselho às Mulheres
Tenha gatos
Eunice de Souza
Se você quiser aprender a lidar com o alheamento dos amantes.
Alheamento nem sempre é descaso –
Gatos voltam para suas caixas de areia quando precisam.
Não xingam pela janela seus inimigos.
Aquele olhar fixo de surpresa perpétua
Naqueles grandes olhos verdes
Vai te ensinar
A morrer sozinha”
Ser nada além de você, é o que os animais fazem. Ir além do que somos é um poder que temos, mas nisso podemos acabar por cair no não ser coisa alguma e nos perdermos do humano.
Isso é tudo exceto uma bússola.

escrevo de dentro, por fora e entre as limiares de pedras (da selva); “Entre estas árvores que inventei e que não são árvores, estou eu.” – R.B
viva há pouco mais de sete mil dias grunhindo de são paulo, sp, brasil.
Uma resposta em “Tudo exceto uma bússola.”
Concordo contigo com relação aos gatos, cães e outros animais de estimação. São eles que fazem nos relembrar de quem somos resgatando a humanidade que ainda está dentro da gente.
Fora os exageros que fazem com os cães e gatos, são nossos companheiros por toda a vida.
Se não fosse por um dos cachorros que tenho, talvez não estivesse escrevendo este comentário aqui.
Eles são nossa bússola com toda certeza.
Até a próxima e um Feliz Natal e um Próspero 2024.