INT. QUARTO EM CASA À BEIRA DO RIO – NOITE
O quarto é pequeno e modesto. A luz é baixa, criando sombras dramáticas nas paredes. O som suave da água do rio pode ser ouvido ao fundo. O ambiente parece apertado, abafado. Há algo melancólico no ar.
Duas PESSOAS se observam cautelosamente.
– Antes de mais nada, peço que se sente confortavelmente e sirva-se de chá. O que estou prestes a dizer pode impor entre nós o silêncio de um inverno russo, então se prepare.
(troca de olhares atentos)
– Acordei com uma certa felicidade culpada. Questionei, olhando fundo nos olhos no espelho, enquanto penteava os cabelos: quem é que pode estar feliz se foi decretado luto nacional até que nossos corações não estejam mais tão dilacerados? Depois de penteada, aceitei – estou bonita e até um pouco feliz. Ou bastante. Então me veio o seguinte pensamento: foi bom passar a tarde observando as roupas dançando com o vento no varal no último janeiro… este janeiro parece tão seco e estático, mal venta. Não gosto do que é estático. Me percebi mais uma vez bela e uma gota de suor escorreu pelo canto esquerdo da cara pra confirmar…
(silêncio)
– Perdão se dessa vez não posso ser tão clara quanto costumava ser, é que minha franqueza se cansou de brigar sozinha. O que eu quero dizer com toda essa ladainha é que rompi com tudo. Sim sim, meu amor, com tudo mesmo. A vida se tornou aguda demais pra mim. Há, volta e meia, um desses fenômenos em que tudo se apresenta impossível e é urgente reflorestar, renascer, qualquer coisa que caiba bonita sob esse mesmo prefixo. Sem mais delongas: hoje eu joguei fora teu amuleto. Me arrepiei ao olhar de perto o suficiente para perceber que havia um nome gravado nele. Não o meu ou o teu, mas algo que quase me fez sentir doer os ossos apenas de pré-vislumbrar. Antes eu tinha saído de casa atrás de algum ponto de emoção ou inspiração e tanto me aconteceu, ah…
(silêncio gravíssimo)
– Entendi que há muito em comum entre o amor e a fome, mas não hei de adentrar nisso contigo. Você certamente não entenderia e agora já está feito. Joguei fora junto com os vasos das flores que tu andava cultivando. Morreram todas, nunca tivemos cuidado. (Cuidado…!) E aí, veio a catarse. No caminho de volta, passei por alguém que disse baixinho, já de longe meu caminho é de pedra, como posso sonhar? Entendi na hora. Sem olhar pra trás, respondi também bem baixo vou querer amar de novo, e, se não der, não vou sofrer. Segui com passos mais convictos. Já em casa, pus Travessia pra tocar bem alto e depois ouvi o disco novo da Dora que eu descobri sozinha, ainda bem. Fiquei com as bochechas avermelhadas de sol por ainda algumas horas. O nome gravado no amuleto era SOLIDÃO.
(troca de olhares que querem dizer adeus)
O fim fica pra sempre suspenso no ar do momento exato em que se sabe que aconteceu. Perdura vibrante, mas dizem que um dia verdadeiramente se torna ameno, quase passa.
O som da ventania que lambe o mato lá fora mal se percebe de dentro da casa. As luzes, amarelas, piscaram algumas vezes: sempre um prenúncio de tempestade – certamente, já chove dentro de cada um. Os dois corpos em perfeita imobilidade. Ainda assim, parecem cada vez mais distantes. Dentro de alguns minutos, um arco íris irá dividir duas paisagens quase opostas, que nunca mais se completarão.
Apesar do calor exasperante, impera o silêncio de um inverno russo: ruidosamente, só o rio chora.

interiorana metida a escritora; enroladora de palavras, pesquisadora curiosa dos assuntos da existência, acumuladora de funções e memórias.
2 respostas em ““Travessia” ou: monólogo a beira rio”
O amor as vezes é cruel, Gabriela. Tirando as pessoas diferentes que vivem em seus próprios mundos, os outros sofrem quando o relacionamento está prestes a terminar e voltarem as suas solidões (ou solitudes em alguns casos).
Alguns fins nem inverno russo se tornam. Pelo contrário, tornam-se tempestades sombrias que levam a uma tragédia sem precedentes pelo fato de um dos lados não aceitar o fim de jeito nenhum e querer prorrogar uma partida já perdida.
E de monólogo a monólogo, as filas andam, como diz um velho ditado que gosto muito.
É isso, Gabriela, um grande abraço e até a próxima.
Eu amei, me reconheci! Quero mais