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Sonho de Padaria

No supermercado, após levantar o plástico que os protegia, a menina de uns sete anos passou o dedo sobre os pãezinhos açucarados conhecidos como “sonhos”. “Ei, não faça isso, meu amor!” Por eu ter chamado a atenção da garota, a suposta mãe, que andava à frente, perguntou-lhe o que eu tinha dito e olhou para mim. Sem tecer nenhum comentário, falei que a criança colocara o dedo nos pães, pura constatação. A mulher fez uma cara de “não gostei” e, adiante, disse alguma coisa para o suposto pai.

Eu só queria levar alguns itens para a praia na prevista manhã ensolarada de domingo. O casal, ambos com cerca de 30 anos, também fazia compras sossegadamente no sábado à noite. Aposto que não imaginavam que uma senhora de 57 fosse quebrar o círculo de confiança deles. Eram um pai e uma mãe, cuja filha deveriam amar, proteger e preparar para os encontros fora de casa: as brincadeiras com os priminhos e vizinhos, a convivência com os colegas de escola, o futuro trato com professores, chefes, subordinados ou clientes, tudo que faz parte do que está distante do lar. Sem dúvida, os dissabores da dicotomia entre o mundo da casa e o mundo da rua, tema da obra de sociologia “Carnavais, Malandros e Heróis”, de Roberto DaMatta, impera entre nós mais do que nunca. É que os sonhos de verdade só existem em padarias. Na vida, são precisos muitos ajustes para realizar o que se quer e, nem assim, há garantias.

Mas, voltando ao casal do supermercado, era esperado que a suposta mãe e o suposto pai não quisessem que a sociedade, coletivo feito de individualidades, fosse hostil com a pessoa que trouxeram ao mundo. Portanto, deveriam reagir a qualquer incômodo que maculasse o microcosmo criado no lar mesmo quando a família saísse para enfrentar a estranheza da rua.

Naquele imbróglio, enquanto minha filha aguardava algo no balcão ao fundo, adivinhei o ato que o suposto pai empreenderia em seguida. Dirigiu-se à mesma bandeja em que a criança havia mexido, levantou o plástico e encostou o dedo em quatro pães, um a um, com o aparente sossego que deve habitar uma consciência segura de seu procedimento. Tanto que permitiu a presença da menina para assistir ao exemplo paterno. Pai professor.

No momento em que se retirava, chamei: “Moço!”, ao que ele se virou. Apontei a bandeja: “Não se faz isso.” Ele, contrariado, disse que estava testando os pães, ou algo assim, deu as costas e fez um gesto de pouco caso com as mãos. Estava vingado!

Assim, hoje vi duas crianças, uma de sete, outra de uns 30 anos, fazerem algo que fugiu ao mundinho da casa e atingiu a coletividade. Ambas deveriam ser educadas o suficiente para não pôr o próximo em risco. O que aprendi em casa e na escola eu já praticava muito antes da Covid-19 levar avós, pais e filhos de tantas famílias enlutadas no Brasil. Percebo que, a muitos, a pandemia não ensinou nem cuidados básicos com a saúde pessoal, que dirá um olhar para fora do próprio umbigo. Lamento ver, aqui e ali, os mesmos comportamentos nocivos de antes.

Fui intrometida ao me dirigir, ainda que com delicadeza, a uma criança estranha? Entendo que algumas cenas encerram mais do que um vírus na ponta do dedo, esse que já seria motivo de cuidado. Além disso, o mundo não responde com delicadeza aos sonhos de quem não respeita o espaço coletivo. Sonhos mais efêmeros do que um doce de padaria. E sei que fui movida pela compaixão por uma menina deseducada pela suposta mãe e pelo pai menino de 30 anos de idade.

Escolhi intervir e, depois da decepção, já na fila do caixa, canalizei minha energia em escrever sobre o ocorrido. Se eles aprenderam algo com nosso encontro, duvido, mas torço que sim, apesar dos tempos conflituosos em que estamos (sobre)vivendo. Pensei falar com a gerência do supermercado. Poderiam deixar os pães fora do risco de contato direto dos clientes de todo tipo. O problema é o silêncio, já disseram. Pelo menos a história real de hoje rendeu esta crônica!

PS: Voltei lá dia desses. O leiaute mudou, não existem mais pães tão vulneráveis aos caprichos humanos!

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