Falo daquele cômodo ou canto que temos em casa todos que, dispondo de algum espaço extra, trabalhamos em atividades que envolvem leitura, escrita e papéis — é, ainda eles, em plena era digital, e sempre muitos. E nesse cômodo ou canto a mesa diante da qual nos sentamos para digitar em teclado ou escrever à mão, o que também fazemos ainda, e com bastante frequência, muitos de nós. Professores, revisores, jornalistas, pesquisadores, escritores, estudantes, dentre tantas outras pessoas dedicadas a atividades afins. A mesa é nossa estação de trabalho e dela partimos em viagens mentais e manuais — os dedos se mexendo nervosamente — cujo ponto de chegada pode ser alcançado, planejado ou imprevisto, todavia ainda nos encontrará ali, na mesma cadeira, diante da mesma mesa. Na chegada, por vezes voltamos acompanhados de uma baita dor nas costas, lesão nos pulsos, talvez um pouco de sono, mais ou menos satisfeitos com o ponto alcançado. A estação, ela não se move.
E é dela que quero falar, não das viagens. Não hoje. Não sei se vocês compartilham comigo da agonia da mesa lotada de tranqueiras e consequente compulsão em mantê-la arrumada, continuamente fadada ao fracasso. Começa assim: observo num canto atrás do laptop — não uso computador de mesa, só esse portátil — uma pilha de livros que havia baixado das estantes para neles selecionar textos para uma das minhas disciplinas deste período letivo. Realizado o serviço, continuam ali e essa constatação provoca em mim de imediato uma comichão de irritação e faz com que procure com os olhos outros elementos residuais de tarefas já executadas, outros objetos sobrando sobre a mesa, ocupando um espaço que de repente parece mínimo e mal aproveitado. Esse movimento se repete comigo de modo quase automático. Estou sempre limpando a mesa e, não sei como, ela está sempre tomada por esses resíduos, excedentes, excessos.
Limpo, reordeno, distribuo os objetos característicos, como pesos de papel, porta-canetas (entupido delas mais lápis com borrachinhas nas pontas, uma mania minha, réguas, espátula, lixa de unha, marcadores de livros, até uma tesourinha), estojo de clipes de dois tamanhos, cola em bastão e fita, adesivos amarelos para lembretes, um planner de folhas avulsas, documentos impressos, um caderninho para anotações, uma lixeirinha, fones, com e sem fio, marcadores de texto, um porta-copos sobre o qual há sempre água, às vezes, café ou chá, e, neste momento, sobrando!, além da pilha de livros que já deveria ter retirado, outra pilha de caderninhos antigos, uma fita métrica, um batom e estojinho de pó solto (para usar no rosto, retoques antes de abrir a câmera para uma reunião). Infelizmente, nesta mesa de tampo de vidro sobre cavaletes, retangular de tamanho médio, não disponho de gavetas, motivo de insatisfação. Devaneio sobre a diferença que faria pelo menos uma gaveta, e esse pensamento me faz rir porque soa dramático na minha cabeça, como se não ter uma gaveta nesta mesa fosse muito grave. É certeza que manteria nela o pó, o batom e várias dessas tralhas das quais não consigo prescindir no dia a dia, como os clipes de papel ou as colas. Mas também é certeza que logo as substituiria por outros objetos nos espaços liberados pela gaveta.
E esqueci de mencionar ainda, sobre a mesa, o calendário. Sou dessas que precisa ver os quadradinhos correspondentes a cada dia da semana, cada semana de um mês, cada mês de um determinado ano. Só visualizando as coisas elas assumem concretude para mim, não sei se compreendem. Então, todo início de ano saio à cata desse tipo específico de calendário, ao qual adicionei o planner de folhas avulsas, que arranco e carrego nas bolsas com listas de tarefas específicas para cada dia da semana. Resolvida enfim a preguiça de carregar agenda, bem como a necessidade de materializar e visualizar melhor essas listas. Claro que, como todos vocês hoje em dia, eu tenho uma agenda eletrônica, para onde vão, por exemplo, as convocações recebidas de reuniões institucionais, esse tipo de coisa. Gosto dos alarmes delas, para uma pessoa distraída como eu eles são uma mão na roda, não nego. Mas ainda não estou pronta para viver sem papéis.
No fundo, no fundo, acho que vocês sabem que toda essa conversa sobre resíduos, excedentes e compulsão de manter ordenada a mesa-estação de trabalho fala, na realidade, de outra coisa: do exercício de controle sobre os fluxos de atividades, mas também de pensamentos. De nossa necessidade, minha e provavelmente também sua, de impor certa ordem ao caos que facilmente toma conta como erva daninha de qualquer espaço cotidiano no qual desenvolvemos atividades diversas. Esse caos, tantas vezes vicejante e propício à criatividade, também nos ameaça afogar no excesso e, de algum modo, ao tentar ordenar a mesa, tentamos ordenar as ideias, domesticar minimamente os fluxos dos nossos pensamentos, ainda que a partir de uma ordem pessoal, singular, nativa dessa estação que é somente nossa, habitada pelo nervosismo de nossas mãos e inquietude dos nossos olhos.
Não importa qual método ou princípio ordenador utilizemos, sempre haverá algum, mesmo que aparentemente sua mesa (armário ou área de serviço) neste mesmo instante pareça caótica. Somos humanos, incapazes de deixar as coisas como estão. Esse papo de “deixa a vida me levar” é só da boca para fora. Criamos nossa realidade, modulamos e dobramos os elementos do nosso ambiente e nossos próprios comportamentos em conformidade com as situações, os relacionamentos, os imprevistos. Agora mesmo tive que interromper a digitação e me levantar para dar um jeito de prender a ponta da cortina com um clipão tipo pinça, porque começou a ventar forte aqui. Por pouco essa ponta da cortina, pesada, não derrubou da ponta frontal direita da mesa o calendário de papelão. A vida, vocês veem, segue desafiando meus ordenamentos e eu, por minha vez, sigo teimosamente insistindo, renegociando e rearranjando as relações entre os elementos aqui nesta minha estação de trabalho. De algum modo, é preciso que a cortina aceite essa limitação e balance mais suavemente em resposta ao vento inesperado, de modo a tornar possível seu convívio pacífico com o calendário e comigo. Assim, pude retornar meus dedos nervosos ao teclado, a atenção à tarefa e digitar as últimas linhas desta crônica.
Sou carioca, 57 anos, moro em Natal há 27 anos. Antropóloga, professora universitária, escritora. Pesquisadora dos campos da antropologia da religião, mídias, tecnologias digitais e consumo. Autora da coletânea de poemas Bordeaux com Asas, de um punhado de contos e de uma novela em construção, publiquei também o livro Santos feitos à mão: devoções religiosas populares em cemitérios no Rio Grande do Norte, e artigos sobre religiosidade, rituais, mídias, tecnologias digitais e consumo no mundo contemporâneo. Você pode me encontrar também no Instagram (@tanyssima).
Uma resposta em “Ordenar os fluxos, domesticar o caos”
Tu não estás sozinha neste caos todo que tentamos ordenar. No meu caso, é quase isso com a diferença de que ainda tenho tabelas esportivas pra organizar e campeonatos de diversas modalidades que acompanho pra poder escrever as crônicas de meu blog.
Não é fácil focar nas histórias quando tu ainda precisa ser o dono da casa as vezes quando sua mãe e irmã saem. E ainda planejar mil coisas pra criar e outras pra passar a limpo.
Domesticar o caos é um grande desafio pra gente. E haja cérebro e vontade de ferro pra isso!!
Uma boa crônica.