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O feminismo que eu aprendi*

Quando muito jovem, não tinha ideia do que era o feminismo, mas ouvia falar de Simone de Beauvoir, à época, ela era a referência maior sobre o assunto.  Ela dizia que “a mulher, não nasce mulher, torna-se mulher”.

Esta afirmação soava razoável, mas eu ainda não sabia pensar no sentido filosófico do termo. Não tinha acesso ao fundamento que sustentava a afirmação de Simone de Beauvoir. Não alcançava a dimensão do seu significado, nem na teoria e nem na prática.

Como se costumava dizer no meio acadêmico: meu conhecimento era de “senso comum”, ou seja, superficial, sem base, sem estudo crítico ou científico.

Nos anos 1990, talvez mais do que hoje, havia uma hierarquia bem preconceituosa entre os saberes. Assim, por exemplo, a marcante presença da minha avó paterna nas nossas vidas, mostrando todos os dias como ser feminista na real, não contava, não aparecia no debate, na ação política e no ativismo da academia. Mesmo que ela agisse como tal. Minha avó Zezé trabalhou como operária numa fábrica para prover seu sustento e dos seus filhos sem a presença ou proteção de um homem para lhe dizer como deveria tocar a sua vida.

Embora as mulheres, como minha avó, fossem um modelo e exemplo legítimos, eram invisíveis. Não tinham cursado uma universidade ou lido algum manual para orientá-las como se tornarem feministas. Elas seguiam a sua intuição e respondia aos desafios do cotidiano. Enfrentavam suas batalhas sozinhas porque a vida delas e dos seus dependiam disso.

Eu sei, todos sabemos ou deveríamos saber que cada pessoa tem experiências de vida ímpares. E, é essa experiência, única, sob medida para cada um, cada uma de nós, como modo de ser e estar no mundo, que nos faz responder de forma também única ao que nos acontece. Não há fórmulas pré-fabricadas ou reprises, só exemplos a serem seguidos, negados ou esquecidos.

No meu caso, o “tornar-se mulher” de Simone de Beauvoir, com toda a carga de luta, dor e também de conquistas importantíssimas, não aconteceu num estalar de dedos como na série “Jeannie é um gênio”. Segui minha vida de menina caminhando ocupada demais com urgências de outra ordem, mas sempre vendo e sentindo tudo acontecer, ouvindo os rumores, cada dia mais perto, de uma mudança necessária que me inquietava, começando lá em casa…

Na minha família, era muito óbvia a diferença de obrigações e privilégios entre os filhos homens e as filhas mulheres. Eles, os meninos, tinham o tempo do mundo para não fazerem nada e elas, nós, as meninas, tempo nenhum para a ociosidade.

Havia uma ambiguidade flagrante no tratamento dispensado as mulheres; de um lado, éramos “naturalmente” fracas para coisas como queda de braço, levantamento de peso, lutas e para bebidas alcoólicas. De outro, éramos convenientemente fortes para as dores próprias das mulheres, jornadas de trabalho doméstico intermináveis e para aguentar tudo e mais um pouco com altivez e resignação, virtudes muito apreciadas por gerações de homens de todos os tempos e também os da minha família.

Havia um Modos operandi clássico como forma de garantir a continuidade da cultura machista, reforçada pela inação de muitas mulheres do nosso passado que acreditavam agir para o bem e harmonia da família ajudando a edificar essa cultura desigual.

Eu via tudo isso acontecer na nossa casa e, nas casas de muitas outras famílias. Mas, minha tomada de consciência veio aos pouquinhos…

Minha irmã mais velha parecia que já tinha nascido feminista. Desde sempre foi muito politizada. Para completar, escolheu cursar Ciências Sociais na universidade. Mesmo antes, já desafiava o poder masculino instaurado. Por conta disso, era chamada de “pavio curto”, rebelde e outros adjetivos depreciativos como “cortina de fumaça” para seu caráter combativo. Ela questionava o fato de somente nós as filhas termos que lavar os pratos, fazer a faxina. E os filhos, não precisarem sequer tirar o prato sujo da mesa.

A independência financeira, acelerou a minha escolha por uma vida adulta consciente e atenta contra toda forma de machismo. Ainda que o mundo em torno de mim no âmbito familiar, acadêmico, amoroso, social continuasse marcado pelo machismo.

Mas, acreditem, a compreensão da feminilidade e do feminismo, veio de uma maneira imprevista. Quando comecei a cuidar da minha mãe, nos últimos anos da sua vida. O contexto era tão dramático, a condição dela tão delicada…

O modo como viveu, quero dizer, o modo como foi filha, irmã, mulher, esposa, mãe, avó, bisavó, se mostravam bem diante de mim em cada gesto, cada silêncio, cada ruga de sua pele tão fragilizada.

Minha mãe era/foi resultado do seu tempo, do tempo em que “sacrificar” tudo pela família era o que se esperava de uma mulher. Aguentar calada, como ela mesmo dizia, era o preço da paz e harmonia familiar. Parecia que tudo aquilo que minha mãe tinha suportado, naquele momento, cobrava seu preço. Poderia ter sido diferente?

Diante da minha mãe, eu me perguntava que tipo de mulher eu era ou como gostaria de ser dali em diante. Desse encontro de cuidados entre mãe e filha nasceram alguns poemas…

Apagamento **

Vejo minha mãe e lembro de outras mulheres…
Mulher, mulheres.
E a palavra soa como um verbete novo…
Substantivo feminino.
É que eu não me dei por ele antes.
É como se antes, ser mulher
não tivesse a ênfase de agora.
Ou talvez não pudesse…
Como um desenho ainda sem contorno.
Ou que tenha sofrido tentativas de apagamento…

Os poemas me ensinaram também a expressar esse feminismo que cada vez mais se afirmava. Escrever me ajudava a compreender as diferenças e semelhanças daquele encontro de deferente gerações de mulheres, revelando até o lado feminista que minha mãe, discretamente, começou a exercitar quando ficou viúva e passou a ver, ouvir e seguir o exemplo das suas filhas, sem medo de ser censurada. Para ela escrevi este poema:

Poema sobre minha mãe

Minha mãe me confidenciou que quando era bem mocinha escrevia…
Disse que rasgou, amassou, jogou tudo fora.
No tempo dela, na vida dela,
Escrever era luxo.
Não cabia no fabrico de bolsas,
Nas receitas culinárias anotadas com letra rude
de quem não completou o curso primário.
Eu conheço bem a letra de minha mãe,
É a mesma que até pouco tempo caçava palavras nas revistinhas.
Eu conheço aquelas mãos marcadas de mulher.
Mãos de quem teve que se entender com facas e colheres de cozinha
E não com uma caneta.
Mas, quando eu mostrei mais um poema,
Minha mãe, que nem se lembrava mais que escrevia,
Fez que sim com a cabeça e sorriu,
entendendo a minha escrita de filha poeta.

*Crônica publicada na obra “Mar de acontecimentos e outras crônicas lidas no programa NadiaViCronicaMente da TV UNEB”. Salvador: UNEB, 2023.

** Poemas publicados na obra “Poeta: substantivo feminino. Ouro Preto: Caravana Editorial, 2024.

2 respostas em “O feminismo que eu aprendi*”

São palavras que comovem e ao mesmo tempo me traz uma certa vergonha pelo fato de apesar dos nossos esforços de entender o que as mulheres sentem, Nádia, a maioria dos homens faz exatamente o que descrevesse com minúcia.

De minha parte, tento fazer as tarefas domésticas mesmo que insistem que não devo nem mexer num prato. Mas faço, embora as vezes brigo por achar que tudo está perfeito, mas na verdade não está.

Ainda assim, tento mudar essa situação aqui em casa de todas as formas, mesmo que encha o saco se preciso for.

Pra que minha mãe e irmã tenham um pouco de descanso.

É isso, Nádia. Um grande abraço e até a próxima.

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