Eu teria escrito um livro pra você se tivesse mais tempo. Ou um soneto que você teria odiado; e, curiosamente, eu também. Quando dei por mim, tu já tinha partido em bando com os primeiros pássaros da manhã. O telefone tocou meio diferente e, antes que eu pudesse compreender, o mundo se/me precipitou de corpo acima, fazendo queimar a garganta, todo o sistema digestivo e também os pulmões. Explodi em tosse e lágrimas. Do outro lado da linha, alguém disse: o sonho acabou.
Fernanda, eu teria escrito qualquer merda pra você, por você, aquele dia na Estação da Luz ou sentada numa sombra nos jardins do Catete, mais perto de casa – mas você nem sabia que eu estava lá. Teria escrito o soneto que só nós duas odiaríamos tão juntas enquanto raspávamos nossos cabelos, eu e você no limite da navalha, você me entenderia tão bem…
Eu teria feito muita coisa naquela noite de agosto há tantos anos se um velho não tivesse mostrado sua falta de dentes pra mim, sem nenhum pudor, na porta da padaria. Ou se naquele réveillon insuportável na praia de Copacabana meu pai não tivesse pisado no meu pé como seu pai também teria feito uns vinte anos pra trás. Sinto muito, darling. O tempo não é tão plástico quanto a realidade. E também a mim nada satisfaz.
Eu teria te escrito todas as confissões, canções de amor, e até as mais sinistras histórias de fantasmas e medo do escuro, sinistras como a vida. Teria ouvido qualquer palavra dos teus lindos lábios, até sermos interrompidas por alguém que diz que num belo dia, ou num dia horrível, a gente vira quem a gente é pra nunca mais desvirar. Então fugiriam-me os sentidos: foge-me ao controle. E aí fodeu, Fernanda. Ninguém me avisou que você tava só de passagem. Só depois me contaram que todos nós estamos, seja lá como for, e eu era a única sem saber (ou fingindo não saber). Empunhei minha melhor pose de desacreditada, fiquei ridícula e despedaçada trajando aos 30 meu vestido de debutante. Vestido de noiva nunca usei, você poderia me dizer como é. Queria que tu me dissesse também que somos a cara uma da outra e tu na verdade diria: “cê não tem mãe não, garota?” Ter, eu tenho; mas me falta tanta coisa…
Eu teria escrito pra você o livro que não escrevi pra ninguém, Fernanda. Mas como bem disse outra colega de ofício, “a gente mira no amor e acerta na solidão”. Sozinha, te escrevo agora do lugar mais quente do desconhecido, ponto cego, e ainda ouso me considerar uma colega de ofício… Veja bem, a gente até pode rir de tanta autobajulação. Te escrevo sem saber como encerrar – deve ser porque também não sei como dizer adeus. “Tudo que eu posso te dizer é:/ Fique./ Hoje não é o nosso dia,/Mas fique.” Pena que não dá mais tempo, eu teria escrito muitos sonetos pra você…
para F.Y, com (muito) amor.

interiorana metida a escritora; enroladora de palavras, pesquisadora curiosa dos assuntos da existência, acumuladora de funções e memórias.
3 respostas em “Eu teria escrito um livro pra você, Fernanda”
Que lindo, Gabriela! Amei!
Uma bela história que me traz memórias aqui neste momento.
As memórias do meu irmão que partiu abruptamente. Tinha tantas coisas a dizer ainda, mas pude dizê-las enquanto era tempo.
Se soubesse que era as últimas vezes que falávamos bobagens, jogávamos videogame e RPG, faria uma história pra ele.
Pelo menos nisso não tenho que queixar. Mandei um poema a ele no último aniversário.
Mas é a valorização do que foi aqui na terra. E se ela marcou sua vida, estará dentro do teu coração pra sempre.
É isso, Gabriela. Um grande abraço e até a próxima.
Muito bom, Gabriella!
É uma ode que só entende quem intui ou sabe que falta alguma coisa nesse mundo…