Gosto muito de caminhar no parque municipal. Até poucos anos atrás, não tínhamos um lugar amplo, verde e seguro para curtir a natureza, no meio desta cidade de mais de um milhão de viventes. Ali podemos parar, escutar as águas de um riacho, o canto dos pássaros e os gritos dos saguis, caminhar sobre pedras, terra nua e folhas, muitas folhas de todos os tamanhos e cores.
Hoje optei por iniciar o passeio pela trilha com degraus de pedras. Mais folhas no chão que de costume era sinal de ter havido ventania. Peguei-me pensando que minha tia poderia preparar uma delas para eu guardar de recordação: ela faz pacientes bordados usando essas partes das plantas como se fossem tecido. Escolhi duas grandes, uma com manchas variadas; a outra, mais uniforme; ambas ligeiramente envernizadas no matiz do sangue. Estava decidida a pedir à tia que bordasse meu nome de escritora e um girassol em alguma delas. Toda vez que eu vir o mimo, vou me lembrar de minha querida, não importará se ela estiver perto ou longe, superarei qualquer tipo de separação. A folha e a tia estarão para sempre comigo.
É notável que, na natureza, as folhas têm vida efêmera, não costumam durar. Mesmo que pertençam a uma árvore secular, são todas substituídas. Caem umas, vêm outras, novinhas… em folha! Passageiras, essas lâminas verdes, marrons, amarelas vão nutrir a terra, mas precisarão se transformar pela ação de fungos e bactérias, num ciclo de vida-morte-vida pelo qual elas voltam em outra configuração, é o que parece. Mas será que a separação entre as partes dói de alguma forma numa árvore? A seiva que flui da raiz à folha opera em fluxo, lembrando o sangue que une irmão e irmã, mães e filhas, sobrinhas e tias! Fico a imaginar mil teorias sobre os laços mais significativos entre aqueles que vieram de um mesmo ancestral, planta ou gente. E a sombra do ser original abriga tudo que lhe cai ao redor.
O fato é que, há pouco tempo fazendo parte da mesma matriz, hoje duas daquelas folhas caídas tiveram seu destino alterado por minhas mãos, instrumentos de uma intenção que parecia definida. Assim, enquanto retornava, cuidei para não as machucar: tocava-as pelo meio, a parte mais resistente na fragilidade que se apossava de seus corpos. Comparei os exemplares, muito semelhantes entre si, como duas parentes próximas.
E continuei a refletir sobre o quanto daquelas folhas há em nós. De nosso jeito, brotamos, amadurecemos e caímos. O que ficará depois que minha eu-folha cair? O pensamento me incomodou, e minha eterna mania de tudo questionar me agitou. Das folhas para o bordado da tia querida, do meu nome feito em linha para meu eu menos permanente, caí verde e joguei minha colheita para o alto, num espasmo reativo acalentado desde o início da jornada.
Não quero a lembrança dela num bordado. Não estou pronta para sair de sua sombra.

Milena Maria é alagoana, casada, mãe, perita criminal e escreve desde criança, mas com dedicação maior a partir de 2019, com a criação do perfil @milmarias.escritora no Instagram. Formada em Arquitetura-Urbanismo e Direito e pós-graduada em Crítica Literária, foi aluna de cursos de escrita criativa e recebeu alguns prêmios, sendo mais relevante o de contos da Academia Alagoana de Letras, em 2019. Em 2021, publicou contos em revistas literárias e nas obras coletivas “De Corpo Inteiras” e “Nada é o que Parece”. Sua obra trata da vivência das dores humanas como processo de libertação. Lançou seu primeiro livro de contos, “Cúmplices Insones de Noites Insanas”, em 2022. Para 2023, tem um projeto de contos confessionais e um de romance.