A crônica nem chegou a ser escrita. Como de hábito, quis escrever, a rotina veio, mas a voz da mente emperrou como engrenagem de máquina sem lubrificação. Ressecada, travou… Na rua o vai-e-vem, não parecia o mesmo, subitamente represado. Fitas adesivas amarelas, como nas séries policiais, ensinavam: “Não ultrapasse”, “No Trespassing”.Aquela rua tão conhecida, mostrava um enorme vazio uma ausência, apontando que algo teve lugar ali. E mesmo quem, como eu, não viu acontecer, soube de tudo, embora estivesse do outro lado da cidade, pelo boca-a-boca inevitável nos pontos de ônibus, na intimidade forçada dos transportes coletivos, depois, na padaria, no mercado, na esquina. Todo mundo sabia o que houve…A tragédia tem essa força nefasta de engendrar-se como acontecimento devastador com um poder perverso de contágio, tanto por sua inevitabilidade, quanto pelo êxito do seu amargo choque, capaz de romper a ilusão de fluidez da vida, como uma onda enorme que força a propagação. Todo mundo vai ficar sabendo, porque todo mundo, a seu modo, quer saber para poder contar sua versão do trágico evento. Como em ‘Édipo Rei”, as testemunhas são chamadas para serem ouvidas, afinal, há que se remontar, passo a passo, os eventos que se sucederam até o trágico desfecho. Como seres providos de razão, haveremos de encontrar uma explicação. Mas há algo que esquecemos de nos lembrar: o trágico não é razoável, não pode ser explicado pela racionalidade. Como povo, como sociedade, como cidadãs e cidadãos, vizinhos e vizinhas ou conhecidos e conhecidas sem nome, que passam na rua, ensaiamos a vida diária como os cegos da obra de José Saramago “Ensaio sobre a cegueira”, que até já virou filme. Nada vemos, nada nos chama a atenção até que… “o que houve?” Ao menos, Tirésias, o sábio personagem cego a quem Édipo chama para ouvir, ensina-o a ver, enfim, recomenda que ele olhe para dentro de si mesmo como caminho para o esclarecimento de tudo. Assim também devíamos fazer: olhar para dentro de nós mesmos para que pudéssemos enxergar o grande abismo que cavamos entre nós e, quem sabe, encontrarmos as respostas que nem a razão, nem nossos olhos conseguem ver, por estarem cegos e exaustos, embotados e gastos de tanto ver tudo.
*Crônica do programa NadiaViCronicaMente 5ª temporada. https://youtu.be/yp9pWzkl6DE?si=J3Ma9roLT2zy-6aJ

NADIA VIRGINIA BARBOSA CARNEIRO é baiana da Cidade Baixa de Salvador, licenciada em Filosofia pela UFBA, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professora universitária há 30 anos, tendo atuado na UFBA, UEFS e desde 2015, na UNEB – Universidade do Estado da Bahia, Campus I Salvador, nas áreas de Filosofia, Metodologia da Pesquisa, Oficina de Linguagem audiovisual e Estética da Comunicação para o curso de graduação em Relações Públicas. Já publiquei mais de uma dúzia de livros de poemas, participei de coletâneas diversas e caminho para o terceiro livro de crônicas.
Universos de interesse: Arte, Cidade, Imagem, Fotografia, Literatura, Poéticas e imaginário urbanos.
Uma resposta em “Crônica vazia*”
Como vazias são os nossos arredores da vida, Nádia. A cegueira nos impede de ver as coisas boas da vida.
Mas nos deixa enxergar só as coisas ruins. Isso é um fato.
Mesmo assim a crônica se encherá não com palavras vazias, mas esperançosas.
Nada melhor que começar este mês de setembro tentando encher nossas mentes de positividade.
É isso, Nádia. Um grande abraço e até a próxima.