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Antes de tudo era ela

Antes de tudo era ela. Um cheiro de vinho rosé entranhado na pele, pescoço vivo, latejando; ela toda um pêssego, de unhas afiadas e olhos cor de céu, mas um céu em dia de prenúncio de tempestade. Seu sulco derramava a mais fina vida, escorria dos olhos até o ventre com a fluidez de um rio. Era toda água. Trágica. O próprio Verbo, a palavra mágica, o som primordial de um universo supernovo em expansão. Os olhos pesados que traduziam tudo, sempre prestes a desaguar. Valsávamos pela sala, trocávamos segredos e danações com o benefício da inocência, coisa que a maré dos dias haveria de levar. E assim foi. Um dia, simplesmente, deixou de estar. Calou-se em imagem, som, e deixou comigo apenas a benção de um silêncio inexplicável – nem um bilhete com marca de batom. Acordei, preparei o café, deixei esfriar na bancada da cozinha: um domingo inteiro de desolação à sombra de uma espera que não findaria. Não me deixou tempo para deixá-la. Desapareceu do nosso apartamento sem largar vestígios, sem a chance de saber seu rumo, sem a dádiva de uma briga ou uma transa de despedida. Passei a mirar o mar por noites sem fim, ouvindo aquela da Marina Lima – às vezes eu quero chorar, mas o dia nasce e eu me esqueço. Não derramei uma lágrima sequer, esqueci. Esqueci também de dormir, não apareci mais no escritório, parei de abrir correspondências. Já estava em clausura há mais de uma semana quando comecei a olhar torto pra mim mesma no espelho. Às vezes até rosnava. A mesma canção girando na vitrola sem parar – tudo que eu posso te dar é solidão com vista pro mar – girando dentro de mim também. Passei a montar guarda na varanda. A brisa da praia me deixando irritante e frequentemente úmida. Catorze andares de altura pra alimentar a vertigem. Quem se importa? Nada é tão vertiginoso quanto a falta.

Dia desses, resolvi fazer um exercício pra sair de mim: olhei pra cima. Descobri surpresa que o céu não tem mais nuvens em 2024. Descobri também uma imagem sagrada num andar mais alto do edifício vizinho. Podia ser ela, mas era outra tão igual a ela; aposto que também cheirava a vinho rosé. Usava um casaco de plumas, mesmo corte de cabelo. Nada por baixo. Não trocamos palavra alguma, um riso sequer: morava na janela do vigésimo primeiro andar e dali se refratava pra mim e mais nada; muito cubista, entrecortada por outros reflexos a qualquer hora do dia. Distante, como devia mesmo estar. Dei pra fantasiar seu nome com a boca molhada. Cheguei a perder a fome tentando adivinhar como se chama a sua solidão (uma solidão um tanto sofisticada, diga-se de passagem). As luzes douradas de fim de tarde por cima do seu corpo me tomaram toda a atenção. Da mesma forma, os letreiros em neon dos prédios ao redor quando o dia cansa de estar e cede lugar ao pranto negro da noite. Cidade proibida. E permanece lá, a imagem imaculada, seios às vezes a mostra, a me fitar com olhos de calamidade.

Devotá-la foi meu único ofício por dias, quiçá semanas. Minha salvadora, verdadeira santidade, me lembrou que posso descansar os olhos. Cochilei por algumas horas na cadeira de praia e acordei com as primeiras gotas de uma finíssima chuva fria me lambendo a cara. O reflexo dela já não estava mais lá, só o meu, no portal do apartamento, triste ilustração moderna da solidão. Mais uma vez estaria fadada à espera? Daqui a alguns minutos, já começarei a me questionar se ela realmente esteve lá em algum momento… Mas antes que isso aconteça, soa gravemente o alarme de incêndio do prédio e me obriga a lembrar que há concretude pra além da melancolia. É o fim. Passo ventando pela bancada, dou um gole no café gelado que ali jaz há tanto tempo, e corro o mais rápido que posso, tentando juntar minhas peças pelo caminho. Ao alcançar a rua, dou razão a Manoel de Barros: com pedaços de mim, eu monto um ser atônito. Estou livre. Atônita e livre! Disparo por Copacabana e o pranto me invade a cara: ainda lembro como chorar, graças a deus.

Uma resposta em “Antes de tudo era ela”

Uma boa crônica pra ler no fim da tarde e sonhar com aquele amor verdadeiro enquanto não chega.

Uma grande história pra entender como a saudade é terrível e aumenta a cada dia mais e mais distâncias.

Esse é o preço que se paga por amar demais.

É isso, Gabriela. Um grande abraço e até a próxima.

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