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A verdade que não liberta

Na noite passada tive um daqueles sonhos em que cenas completamente aleatórias se sobrepõem umas às outras. Nada com nada, estranhíssimo. Mas o que me chamou atenção foi a presença de uma pessoa que eu não vejo há pelo menos uns vinte anos aparecendo para mim. 

Uma moça que durante minha adolescência na igreja era líder de um grupo do qual eu fazia parte. Entre as tentativas de decodificar o que ela representava, a fim de captar o significado do sonho, me lembrei de um episódio em que fui grosseiro demais com ela, em nome da verdade. 

Certo dia, em uma reunião para acertarmos alguns pontos de conflito que estavam havendo no grupo, eu fui porta-voz das queixas dos demais membros. Como sempre me senti o justiceiro, fui lá, expressar o que todo mundo pensava, mas ninguém tinha coragem de dizer. 

Acredito que a líder já desconfiava que iríamos levantar questões delicadas, mas talvez não esperasse ouvir tanta sinceridade da forma como eu despejei naquele dia. Tudo estava indo bem até o momento em que ela abre a oportunidade para que pudéssemos dar o nosso feedback. Ninguém se manifestou porque já estava certo de que eu iria falar por todos ali, não era um grupo muito grande, portanto, fácil de se organizar. 

Comecei a trazer todos os pontos levantados pelos demais membros, coisas que eram exigidas de nós, mas que a própria líder não conseguia cumprir. Um clima de tensão tomou conta da reunião e o conflito foi instaurado. Eu me irritava e me alterava à medida que falava, até parecia que ela tinha feito algo que me atingisse de maneira pessoal. 

Não sei por quanto tempo falei, só sei que falei demais. Não falei nenhuma mentira, todos concordaram comigo, tanto que a líder não teve muito o que fazer a não ser aceitar nossas objeções às regras sem sentido que ela queria nos impor. 

Passada a reunião, acabei sabendo que ela havia comentado que tudo o que eu havia dito era verdade, mas que eu falava de um jeito muito duro. Ela não estava errada. Esse meu jeito de achar que posso machucar as pessoas com a verdade ainda me acompanhou por um bom tempo. Me gerou conflitos sérios mais na frente, onde minha fantasia de portador da verdade junto com o descontrole emocional que eu tinha na adolescência, acabaram me fazendo brigar com uma pessoa que era muito próxima a mim, e que claramente tinha mais maturidade do que eu para lidar com essas questões. 

A lembrança trazida pelo sonho me fez pensar se hoje eu agiria da mesma forma. Na época, era aquilo que eu conseguia fazer. Hoje, eu diria diferente as mesmas coisas que eu disse para ela naquele dia. Tentaria me sentir menos ameaçado seja lá pelo o que fosse, afinal, nada ali era sobre mim, era sobre o bem estar do grupo, eu é que levava a um nível pessoal. Uma arrogância inconsciente de querer me sair melhor do que o outro em qualquer discussão. 

Eu não dava muito espaço para que eu mesmo pudesse enxergar meus próprios erros. O que também não me deixava ver que os outros também erram, e têm o direito a isso, estamos todos aprendendo. 

Continuo fazendo uso da verdade como uma boa arma para desmantelar conflitos nas relações, fofocas e conversas pela metade. Ninguém espera que você seja sincero quando te perguntam algo, porque ninguém sabe lidar consigo mesmo quando se depara com a verdade. Somos ensinados a buscarmos as ilusões o tempo todo, inclusive as que nos tornam estranhos a nós mesmos. 

Mas  aprendi que nem toda verdade deve ser dita, principalmente quando ela vem cheia de intenções de machucar e magoar, quando ela serve mais para levantar meu ego do que para ajudar o outro a se melhorar. E mesmo essa, bem intencionada, precisa ser bem dosada e administrada no tempo certo. 

A verdade é uma arma sensível e de manuseio delicado, um deslize nosso e ela dispara por entre os dentes pronta para ferir o outro, e tudo isso com a desculpa de que só estamos sendo sinceros. 

2 respostas em “A verdade que não liberta”

As vezes, a verdade dói a ponto de destruir relações de amizade por anos e mudar tua vida pra sempre, na maioria das vezes pra pior.

Parece loucura dizer que o tom de voz das afirmações faz a diferença no futuro, mas é puramente verdade.

Tudo é questão de maturidade e humildade pra reconhecer seus erros, o problema é que a arrogância e a estupidez não permitem que isso aconteça e o erro é repetido com uma potência dez vezes mais devastadora.

No fim das contas, a verdade não te liberta nem evolui, mas sim te joga na teia da prepotência e da presunção de ser o melhor em tudo.

Pura ilusão de pretensa superioridade que acaba ou numa cadeia ou sendo enterrado por um coveiro.

É isso, meu bom amigo Walter (aliás, é nome do meu avô materno), que bom que aprendemos isso da verdade. As vezes a meia-verdade é o melhor caminho pra casos como esse.

Um grande abraço e até a próxima.

Sim, Mário, só a maturidade é capaz de trazer esse aprendizado pra gente. Mas que bom que estamos todos crescendo e buscando aprender com os erros cometidos em nome de uma suposta verdade.

Legal saber que o nome do seu avô também Walter! Coincidência bacana.

Abraço grande, sucesso e verdades ditas no momento certo!

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