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crônica narrativa

A tampa e o baú

O velório de Cirino transcorria dentro da normalidade. Começara no finzinho da tarde, apareceram os parentes e colegas de serviço, e agora entrava pela madrugada com a participação apenas dos mais chegados. Naquela última homenagem não estavam nem dez pessoas e, naquele momento, já chegando às altas horas, era de se esperar o pouco afluxo de viventes.

Ernanda, a viúva, choramingava sem parar desde que depositaram o caixão do esposo no mármore. Era sabido, e comentado, entre os que conviviam com o casal como ambos eram encegueirados. Como se dizia nos antigamente: eram a tampa e o baú.

Apesar do relógio marcar três e quinze da manhã, dois colegas de repartição do falecido ainda se mantinham no local à base de café forte e grosso. Para espantar o sono, permaneciam o tempo todo parlamentando.

— Uma vida dedicada à mulher e aos filhos a do Cirino.
— Pois é, o casamento deles era como o dos pombos. Uma vez acertado o compromisso, dura para sempre.
— Bonito de ver isso.
—E raro. Raríssimo.
— Casamento é loteria, né?
— Bota loteria nisso, rapaz, é megasena acumulada.

Nesse momento, entra no saguão uma jovem dos seus 28 anos. De uma beleza helênica. Alta, bem fornida, os cabelos caindo em cachos negros sobre os braços queimados de sol. No ato, passou a ser o assunto dos colegas de Cirino.

— Conhece a moça ali no caixão?
— Era vizinha do Cirino.
— Ah, é pra esta que ele dava aula particular?
— Ela mesmo: a Florinda. O Cirino deu uma força em Matemática Financeira para a moça no concurso do Banco do Brasil.
— Olha, eu me vendia barato no Mercado Livre para ficar dez minutos com essa deusa fechado em algum canto.
— Fala baixo!
— Falo, mas que essa daí é de a gente largar casamento, filho e patrimônio, ah, isso é!

 A dupla notou que Florinda, com lágrimas nos olhos, passava a mão nos cabelos do defunto. De onde estavam não dava para saber se era um carinho, ou se os ajeitava. Ficou assim por um tempo razoável, o que os levou a concluir:

— Cena linda, hein? Sorte grande a do Cirino, rapaz.
— Tem gente que nasce, e morre, com a bunda para a lua.

 Acabaram de proferir a frase e Ernanda deu um salto do banco em direção à Florinda. Quando se aprumou diante da beldade, lhe aplicou uma tapona de cinco dedos abertos nos queixos que fez a cara torcer.

Os parentes acudiram levando vítima e algoz para tomar uma fresca na calçada. Só ficaram os dois colegas diante do extinto.

— Mas surrar um monumento desses só porque pegou no topete do Cirino. Menos, poxa!
— Que pegar no topete, idiota! Presta atenção…
— Presta atenção no quê?
— Olha direito pro defunto, olha…

O colega fez um travelling vagaroso pelo corpo, por inteiro. Quando chegou em determinada zona, largou uma gargalhada que ecoou pelas paredes do edifício. Cirino estava em estado de ereção.

3 respostas em “A tampa e o baú”

Que grande história. Isso me fez lembrar Um Morto Muito Louco onde o cara já morto fazia estripulias com os dois personagens vivos.

Aqui teve o acerto de contas clássico entre duas mulheres e a surpresa no fim. A parte da ereção foi fantástica.

Em todos esses 13 anos nesta indústria literária vital, é a primeira vez que isso acontece em um texto que leio. A ressurreição de um pintinho.

Essa não tenho palavras pra dizer. Só uma frase pra terminar meu comentário, Carlos, enquanto ainda me recupero das risadas.

“Levanta-te e anda, dito-cujo!!”

Um abraço e até a próxima.

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