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Gaiviotas

Prezo insetos mais que aviões,
Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis
Tenho em mim um atraso de nascença
Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.

(Manoel de Barros)

Santa Luzia faz sentido que seja o nome de um farol de Vila Velha: dá luz às gaivotas de gênero e espécie Larus michahellis para que se aprocheguem mediterrâneas dos países ibéricos até terras latinas sem que se percam. Elas, entretanto, sabem-se turistas por cá e sequer precisariam de luzes de faróis para se orientarem – orientavam-se muito bem antes mesmo dos faróis de Santa Luzia – diferentemente das louras oxigenadas de luzes nos cabelos que se aprochegaram do guia turístico dizendo que visitavam a cidade sendo elas-mesmas canelas verdes porque valorizaram a cultura local, e tomaram um rasante gaivótico – uma voadora de patas amareladas nos peitos, deixando-lhes sorrisos amarelos: “mas valorizam a cultura local pelas botas dos portugueses ou pelas flechas dos indígenas?”.

Era domingo de sol-amarelo e nos orientaram a olhar pelas lunetas terrestres todas as edificações terrestres ao longe: estaleiros, a baía de Camburi, portos de aportar e montanhas de montanhar. Todas coisas muito paradas que, de olhar, olhei, no segundo seguinte já tinha olhado. Gaiviotinha que nem era michaela passou rasante e arregalei o outro olho pela luneta – eu fechava um deles para olhar como se isso me fosse ajudar, enquanto apenas distorcia paralaxes numa ilusão de nitidez – tudo apenas para olhá-la meter bico em água. Girei loucamente a luneta. Meu atraso de nascença é doidura de desatenção: não consegui seguir sequer uma ordem de olhar na mesma direção que todos olham todo o tempo todo e de chateação e tédio virei muito mais à liberdade e ao movimento, cositas rarefeitas como o ar, que chamam a atenção involuntária. Diferentes que são desse mundo comum de grilhões – o grilhão inclusive da ordem de olhar tão-somente o tempo todo aos grilhões e nada mais, muito atentos a eles-grilhões para não desejar nada mais. Repetir repetência chatíssima para entediar com a repetição repetitiva e culpar repetitivamente ao chateadíssimo entediado.

Será serei, então, apenas um involuntário, um sem força de voluntade? Será errarei palabras, errante no caminito, ignorando Michaelis como um grande dicionário português-brasileiro normativo de ordens de palavras certas e usáveis, porque só me lembro da gaiviota de patinhas amarelas que nem nunca pisaram aqui, foram-se só de passagem mediterránea, mas minha memória infantil obnubilada tornou-se fabulosa e fabulou uma mentira grandiosa sobre gaviotas – que voavam errantes –; e ao fazê-las erradas aqui pude com elas me identificar. Será com mais ninguém me identificava?

De nada me rememorar do meu passado, tê-lo bloqueado, gritam-me que sou um traumatizado, mas eu estou surdo-submergido no oceano de possibilidades confabulares com as quais posso preencher minha história, esse mesmo mar grandioso, impróprio de verdades, que as gaivotas conhecem-no todinho de peregrinar e a mim também. Gaivotas que tanto viajam continentes quanto assaltam a mão armada – empunhadas de bicos e asas – os croissants dos turistas na Austrália. Perderam o medo do mar e das leis – voam e roubam, croissants e corações, como roubaram ao meu – não pelo hábito, mas pela desilusão: o mar deixou de ser-lhes infinito – elas o atravessaram; as leis humanas deixaram de serem-lhes soberanas – elas as ignoraram. O mar nos controla – dá-nos medo – pela impossibilidade de controlá-lo; somos-lhe reféns pequenos para onde quer que ressaqueiem e lancem-nos quebrantes contra pedras de quebrar ossos. As leis nos controlam – dão-nos medo – pela impossibilidade de controlá-las, somos-lhes reféns pequenos para onde quer que nos saqueiem e lancem-nos empobrecidos contra prisões de torturar corpos.

And this is a very important question: será o farol de Santa Luzia iluminou os caminhos por onde este texto peregrinaria? Qual oceano de intensidades será que essa gaivota bica ao mergulhar-se? Roubará um peixe, um croissant ou um coração?

Prezo gaivotas mais que portos-solidão.

Uma resposta em “Gaiviotas”

Uma crônica que nos faz pensar sobre o que nós podemos aprender com as gaivotas. Uma dica: nunca despreze as pessoas solitárias. Esses portos-solidão podem ensinar muita coisa. (corrija-me se eu estiver errado).

Mesmo assim, uma excelente crônica. Um grande abraço.

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