Chá de macela me remete a uma lembrança de infância. Nem boa, nem ruim – apenas uma daquelas imagens quase sem movimento que ficam guardadas em algum lugar da memória. É que na escola onde estudei, toda vez que um aluno tinha qualquer mal estar, como uma dor de barriga, enjôo, dor de cabeça ou tristeza, os professores nos mandavam para a cozinha, pra tomar um chá de macela. Das vezes em que dei esse rolê, por motivos os quais já não lembro, guardo essa cena: a pequena cozinha mal iluminada, azulejos verde claro nas paredes, o som distante das salas de aula; uma senhora de avental puído; eu, sentada em um banquinho, segurando uma xícara de vidro transparente com ambas as mãos, repleta de uma água morna onde dançavam as inflorescências amarelo claro.
Confesso que, na época, tomar aquele chá mais parecia um castigo do que um alento. Tinha um cheiro estranho e um gosto complicado demais para um paladar infantil. Além disso, como nunca tinham me explicado suas propriedades calmantes, digestivas, analgésicas, entre tantas outras, eu duvidava que aquele chá pudesse mesmo me curar do que quer que fosse. Pra mim, estavam apenas tentando me distrair do que eu sentia, até que chegasse, enfim, a hora de ir pra casa.
Só depois de adulta é que eu comecei a me entender com a macela. Agora já informada dos seus efeitos cientificamente comprovados e do seu uso na medicina dos povos originários, avistei um buquê daquelas florzinhas que são um dos símbolos do Rio Grande do Sul em um passeio pelo centro de Porto Alegre. A imagem da infância se fez viva. Como eu disse antes, nem boa, nem ruim, apenas presente. Levei o buquê para casa, como quem recolhe um pertence há muito tempo esquecido em um canto qualquer.
Escrevo na semana que antecede a Páscoa. No último domingo, a macela resolveu me pegar pela mão e me levar até um lugar que eu sempre quis conhecer: o alto do Morro Santana. Participei de uma ecotrilha de colheita do chá, organizada pela Retomada Multiétnica Gãh Ré e pelo Preserve Morro Santana, com o intuito de arrecadar fundos para a ida da Retomada ao Acampamento Terra Livre, em Brasília. Eu, que sempre gostei de estar no meio da natureza, mas que depois da pandemia tinha me tornado sedentária e preguiçosa, vi nesse passeio uma oportunidade de retomar um tipo de atividade que sempre me fez bem.
Durante a trilha, nossos guias contaram não só fatos históricos do Morro, como também falaram sobre a importância de preservar o lugar, que abriga diversas nascentes que formam os rios da cidade. Além disso, a presença da Cacica Gah Té, que em diversos momentos compartilhou conosco a sua sabedoria sobre a natureza e sobre a vida, nos fez lembrar da importância de silenciar pra ouvir o que os espíritos do território querem nos dizer, e de caminhar com respeito sobre o colo da mãe.
Enquanto andávamos em direção ao alto do Morro, lá estavam elas: as delicadas florzinhas do campo, que carregam uma potência dentro de si. Me dei conta que nunca as tinha visto assim, vivas, no seu lugar. A macela que já estava aqui antes de nós, a macela que cresce espontaneamente todo ano, a macela que nos acalma e nos conforta. Fiquei pensando que se, quando criança, alguém tivesse me contado pelo menos uma parte de tudo o que a macela é, talvez eu não tivesse me sentido tão abandonada naquela cozinha da escola.

Sou formada em Design de Moda e trabalho na área desde 2007. Durante a pandemia, resolvi resgatar alguns caderninhos de dentro das gavetas e me dedicar também à escrita. Publico meus textos no meu Instagram pessoal (@camillamatos_) e em revistas, e desde o ano passado faço parte da Oficina de Escrita coordenada pela professora Joselma Noal. Moro em Porto Alegre, RS.
Uma resposta em “Chá de Memória”
Que lembrança boa e que texto gostoso de ler!