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crônica

Um Dia de Banco

Antes de mais nada, gostaria de aproveitar a oportunidade para desfazer um mal-entendido, ou talvez, alguns mal-entendidos. Faço isso porque fui acusado de agir com má vontade ao retratar algumas ocorrências na vida de um amável senhor.

Pois bem, se puder esclarecer os pontos, creio que nas histórias anteriores (Um dia de Carnaval e Um dia de Supermercado), as circunstâncias tornaram o nosso herói mais vítima do que algoz. Por isso creio que achará interessante essa nova perspectiva.

Dia de pagar as contas do mês, geralmente não é bom para piadas, assim como é na vida do jardineiro quando “nem tudo são flores”, Armengard precisava ir a um banco cumprir o grave dever cívico de colocar a vida financeira “rigorosamente em dia” (só quem assistiu Silvio Santos entenderá a referência).

Logo que atravessou a porta giratória, Armengard foi abordado por uma jovem senhorita, muito sorridente por sinal, que lhe entregou um pequeno formulário. O idoso agradece e retribui o sorriso e se dirige para a fila de pessoas em condições especiais. Por sorte, havia apenas uma senhora, que quase não se aguentava em pé, com um óculos de fundo de garrafa se esforçando para enxergar o número na papeleta da senha. O tipo de senhora que puxa assunto e não para de falar até que o mundo se acabe. Armengard resolveu esperar para ver se aparece mais alguém. Então surge uma jovem senhora com criança de colo e outra segurando a barra da saia.

— O senhor está na fila? — ela pergunta a Armengard.

— Não, não, pode passar a frente. — Armengard quase não esconde o sorriso de satisfação.

Assim que a mãe se coloca atrás da idosa, ela é bombardeada de assuntos diversos. “O doce sabor de estar certo”, Armengard saboreia a grande vitória de uma batalha.

Nesse momento ele volta a atenção ao papel que a mocinha da entrada o entregou, quando algo deixou Armengard indignado e foi até a moça:

— O que significa isso? — apontando uma região específica do papel.

— É uma pesquisa de opinião sobre a sua satisfação pelo nosso atendimento. — ela disse com um sorriso petrificado no rosto.

— Eu sei que é uma pesquisa, quero saber o que significam essas opções de resposta: “curti” ou “não curti”.

— Ah, é para saber se o senhor gostou ou não. — o sorriso continuava incólume. 

— Então por que as opções não são: “gostei” ou “não gostei”?

— O senhor pode dar essa sugestão aqui no espaço de comentários. — ela pareceu genuinamente solidária.

— Minha filha, pelo amor de Deus, — rosto avermelhado, quase infartando — aqui é uma instituição secular, um templo de um dos bastiões da nossa nação, deveria ser inadmissível ter uma pesquisa confusa assim.

— O senhor não sabe o que é “curtir”? — Por um instante o sorriso pareceu mudar para um tom sarcástico.

— Óbvio que sei. Mas não entendo como a resposta se aplica aqui.

— É porque eles usam linguagem de internet?

— Por acaso nessa internet não se escreve em português?

— Claro que sim. É que o senhor não sabe o que tá rolando com a nova linguagem.

— Moça, de acordo com a ortografia oficial da norma culta, “curtir” é o ato de esticar a pele de um animal para produzir o couro. A senhorita pode me explicar o que o couro esticado tem a ver com a minha satisfação no atendimento desse recinto?

— É que na internet é igual a “gostei”.

— Qual foi o tradutor que definiu esse neologismo?

— Veio do inglês “like”.

Nesse momento já havia um burburinho, pessoas reclamando do monopólio no atendimento, outros idosos exigindo atenção  e o sorriso da menina estava mais amarelo do que sinal de trânsito. Enquanto isso Armengard ficava ainda mais exaltado e esbraveja com o dedo em riste, dirigindo toda fúria na direção da pobre menina, que tentava se justificar:

— Senhor, eu só distribuo os formulários.

— Ah, claro, então está tudo certo, a senhorita não tem nenhuma responsabilidade sobre o ocorrido, a senhorita “SÓ distribui o formulário”. Pois saiba, minha cara, que a senhorita está contribuindo para a corrupção e desvalorização de um dos maiores pilares de uma nação, ou seja a língua mãe, a nossa maior virtude como seres humanos,…

Nesse instante, Armengard levantou o dedo indicador, foi quando alguém gritou desesperado.

— Ele tá armado!

As piores palavras a serem ditas em um banco. As portas travaram, as pessoas se jogaram ao chão, uma sirene disparou, lâmpadas começaram a girar tresloucadamente. Só então Armengard, arrefeceu seus brios e interrompeu o discurso patriótico.

— Meu Deus, o que está acontecendo? Isso é um abs…

— Assalto! Ele tá nos assaltando. — de novo alguém berrou interrompendo o pensamento de idoso.

— Ai, moço, pelo amor de Deus, eu só vim pagar minha conta de luz. — a jovem senhora chorava com os filhos embaixo dela.

Um dos seguranças tentava acalmar Armengard.

— Escuta, seu moço, eu tô aqui só pra fazer uma pontinha pra aposentadoria, nem sei usar essa meleca aqui — ele tira o revolver da cintura e coloca no chão — só faz o teu e deixa a gente em paz.

Uma mulher começou a cantar louvor e outra a recitar um terço.

— Mas, que loucura é essa? Todo mundo ficou doido? — Armengard tentava entender a situação, sem se dar conta do que acontecia do lado de fora.

Um grupo do BOPE já havia isolado as ruas e gritava ao megafone.

— Nós queremos te ajudar, deixe os reféns saírem ilesos!

Homens e mulheres começaram a chorar descontrolados. Barulho de helicópteros, câmeras da televisão e celulares de curiosos apontaram em sua direção davam o furo do dia, a notícia correu em âmbito nacional.

“Cansado de humilhação idoso protesta contra a previdência social e exige recálculo do seu benefício” Era a manchete das grandes mídias. “Vovô Maromba assalta banco para comprar estimulante sexual”, era o que a internet espalhava. Alheio a tudo, Armengard ainda se perguntava o que deveria fazer e deita no chão.

Um dos seguranças joga seus cento e poucos quilos em cima do homem que quase morre sufocado. O BOPE joga granadas de fumaça e gás lacrimogêneo, as portas de vidro são arrebentadas, um grupo corre desesperado a fim de achar ar puro para respirar. Repórteres noticiam o sucesso da operação sem nenhum ferido e a captura do maior líder da quadrilha de assaltos a banco do Brasil, um marginal que se passava por idoso e se aproveitava da fragilidade do sistema de vigilância deficiente em todo estado. 

Novamente conduzido para a delegacia, o delegado desmentiu toda narrativa veiculada na mídia e, também, porque já conhece Armengard de outros carnavais. E, claro, nosso herói teve que pagar suas contas em atraso e lamentou que as próximas faturas virão com juros.

Pensando bem, acho que esse exemplo não foi muito positivo para o meu amigo.

15 respostas em “Um Dia de Banco”

Outra vez nosso querido Armengard se mete em confusão. Tudo que queria era apenas pagar suas contas no banco em paz e acabou se metendo no meio de um assalto.

É difícil pra uma pessoa que vive em “modo clássico” se adaptar a esse louco mundo moderno com likes, curtidas, etc…

Armengard é um cara a moda antiga assim como eu e tantos outros.

E é por isso que ganhou um espaço no meu coração. Um espaço cativo.

É isso, Cândido. Um grande abraço e até a próxima.

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