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Por dentro da crônica

O Grande Baile da Literatura*

O cronista sempre entra de furão no Grande Baile da Literatura. Não, não pula os muros do clube, qual nada: ele se aproveita da boa amizade com o porteiro, seu fiel leitor de toda a semana. Daquela corte inteira, talvez seja o primeiro cujo nome o rapaz sabe de cabeça, ainda que perceba a clara nobreza dos que cruzam pelo tapete vermelho e ganham os portais do salão principal, no alto da escadaria de mármore.

Lá, iluminados pelo justo lustre de cristal, as mulheres trajam elegantes vestidos longos, os homens sóbrios smokings com gravatas borboleta. O cronista, por sua vez, está com um summer o qual fora comprado num brechó cujo dono jurou de pés juntos ter sido de Noel. Com ele, afiançou, Rosa excursionou com os Ases do Samba (Francisco Alves, Mário Reis, Peri Cunha e Nonô) pouco antes de falecer. “Até amanhã, se Deus quiser…”, cantarola o cronista, enquanto é frequentemente confundido com um dos garçons. “Quem é você que não sabe o que diz…”, responde.

Num canto, entre canapés e taças de espumante, ensaístas tecem longas teses sobre os destinos da humanidade, tão bem representadas nos conflitos do mais recente romance daquela autora em ascensão meteórica e cuja modéstia (ou vaidade) lhe impede de dar apartes. Um colega romancista mais velho, ao lado, dobra e redobra o guardanapo num inequívoco sinal de desconforto — queria ser ele, desesperadamente, o centro das atenções. E é este o detalhe a chamar a atenção do cronista que, ao ser visto compondo o grupo — com que roupa? —, sai de lado, disfarçadamente. Ah, este summer…

Ao se aproximar dos poetas, o furão nota que todos se pavoneiam para as mulheres e elas, juntas, sorriem arrebatadas e suspiram ante as declamações mais efusivas. Ele mesmo vibra com tamanha eloquência teatral, fascina-se com tanta formosura desvelada em cada verso, chega mesmo às lágrimas. Como conseguem?! E poderia ficar ali nos arredores do lirismo para sempre, se não fosse flagrado ao aplaudir num súbito ato de descontrole. Não, não é poeta, justifica-se, estava apenas no caminho da toalete e parou para ouvir.

No transcorrer do Grande Baile da Literatura, o faceiro cronista circula, dança com as mais belas damas, escuta seus segredos, oferece o ombro em consolo e a boca em gratidão. Conta uma piada ou duas, se diz sincero fã de meia dúzia ou mais. Admite, constrangido, não ter lido todos os clássicos — muito menos em alemão ou russo — e parece ser perdoado por isso. E, quando chega a alta madrugada, é o cronista que lá permanece, agora bebendo com o pessoal da cozinha, da copa e da limpeza. Não, não está só: goza da companhia de dois ou três poetas malditos. Mas esses, de tão ébrios, já nem dizem coisa com coisa.

* Eis uma pequena amostra da versatilidade da crônica para representar quem seria o cronista dentro do luxuoso ambiente literário. Noel Rosa não entra sem propósito — sua obra é muito ligada ao cotidiano.

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Uma resposta em “O Grande Baile da Literatura*”

Gostei bastante deste baile da literatura de Noel Rosa. É como se tu estivesses lá dentro vendo tudo com ares de Ibrahim Sued e de suas famosas tiradas.

O que eu seria nessa parte? O cronista que fica no canto escuro bebendo goles de solidão enquanto observa o ambiente colorido do salão. Ficaria sem dúvida comendo com os cozinheiros e bebendo com os três poetas que já estão mais pra lá do que pra cá.

A propósito daquela última pergunta que me deixou, não sou parente do professor Paulo Gayer, sou de uma ramagem mais dos lados do Capão do Leão, do lado materno. Tive realmente um tio meu que se chama Paulo, mas era policial militar e já está no outro plano a 25 anos.

É isso. E moro em Pelotas a 40 anos.

Um grande abraço e até a próxima.

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