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crônica

Pessoalíssima

Lembra-se de duas cenas bastante específicas: três senhoras discutiam atravancando a passagem, uma em seu carro, outra em seu carro, uma na calçada mesmo. Não conseguiu entender do que se tratava toda a argumentação e não quis entender também, essa é a verdade, pra não perder a magia, a beleza do ato. Recorda com detalhes as roupas e modelos de óculos de cada uma delas. Um pouco mais a frente, uma mulherzinha de rosto vincado esbarrou em sua bolsa de feira. Trocaram olhares. Era tristeza demais para um só par de olhos, um oceano no meio do rosto seco, árido, vejam bem: apenas um oceano, não um oásis, e por alguns segundos passou a achar que já tinha cruzado aquele olhar em outro momento, em outra rua. A mulherzinha usava um vestido amarelo com flores amarelas e uma medalha, dourada, naturalmente, de alguma espécie de nossa senhora dando continuidade às rugas do pescoço. Fora as duas ações extraordinárias, nada que lhe fugisse à rotina, sempre tão pacata e inabalável. O grande problema foi que, depois disso, foi um branco total. Literalmente. E então, a inconsciência. Ah, mas como é plena a inconsciência! Devo deixar aqui num breve adendo que acredito que a morte seja a superfície mais lisa e perfeita, uma superfície rara, toda feita de antimatéria, em cores que os olhos humanos ainda não tiveram o prazer de experimentar. E dali desenrola-se uma esteira flutuante, asteroides ao redor, um belíssimo blues com distorções na trilha sonora da eternidade: o agora fomos adaptados a chamar de vida não é por falta de consciência do outro lado – na inconsciência é que acontece a experiência definitiva, ela que, por sua vez, é pessoalíssima, intransmissível. Logo, a boca torna-se obsoleta. A voz deve ser o tato ou algum outro sentido inédito e eis o verdadeiro advento de uma nova comunicação, aquela que só acontece dentro de si – assim desvenda-se o mistério. Foi o que o universo antecipou naquela tarde àquela mulher, que, acalmem-se, não estava morta, mas deveria desenvolver sentidos inéditos pois a fala ela acabara, inexplicavelmente, de perder. Não saberia explicar quando foi que acordou, mas percebeu que havia realmente voltado de ou a algum lugar quando apertaram seu ombro. Chamavam-na por alguns nomes que talvez fossem seus, mas não sentia vontade de responder. Por algum motivo, sabia que não cabia mais dentro de um nome, uma só palavra que nem verbo era. Não cabia mais no corpo, naqueles cabelos, nas roupas insossas. Pensava com clareza, entendia tudo dentro de si, sabia agora mais do que sempre, mas ainda não sabia, não com certeza, que faltava-lhe voz. Apenas desconfiava. Melhor: sabia sim, sabia porque sentia. E sentir sempre basta. Era chegado o momento cabal que tanto esperara e disso ainda não sabia. O momento em que observaria o mundo da maneira como deve ser, com calma, com a tranquilidade que reside no silêncio. Em alguns, claro. Não é via de regra. Alguns silêncios antecipam abismos. Aquele não, definitivamente. Por puro reflexo, moveu os olhos, procurando por médicos, anjos, buquê de flores, cesta de café da manhã, em suma qualquer indício de que sua falta havia sido sentida, mas não encontrara nada. Talvez não tenha dado tempo e, se tivesse, quem é que se prestaria a assinar um cartão desejando melhoras nos dias de hoje? O mundo anda tão apático… Foi nesse desvario que finalmente se situou, percebeu que estava sentada na calçada, o braço de um desconhecido apoiando-lhe as costas, em algum cruzamento que ainda não identificara e que, pela arquitetura das construções ao redor, não parecia muito perto de casa. Lembrou-se, então, vaga e aleatoriamente, de ter assinado a folha de ponto na repartição antes de sair para o almoço, pode ter sido hoje cedo mas parece fazer tanto tempo… Importante é que o salário estará na conta no final do mês e por esse episódio totalmente absurdo certamente lhe darão um atestado médico, ou hoje será domingo? Voltamos à pacatez inabalável. Aparentemente está perfeita, disse uma voz distante, talvez fosse até outro idioma, e aí ela pensou que certamente estava atrasada para fazer o jantar e tentou levantar num movimento desajeitado ainda que honesto. Caiu de joelhos, sob discretas reações da considerável plateia que havia se juntado ansiando por emoção. Da quase catatonia, passou a sentir raiva. Começou a se reconhecer, pois. E começou a memorar. Na noite anterior fora dormir impressionada por um filme e sonhara com Ana Cristina César. Acordara arrasada sem grande motivo aparente e, indo contra seus próprios princípios éticos, arriscou voltar a dormir. Aí sonhou com o pai distante, com a morte do marido e com algumas crianças correndo por uma velha casa que ela tinha a certeza de já ter visitado em outros sonhos. Fora isso, nada que fugisse à rotina, já sabemos. Descobriu não recordar o rosto do marido ou seu nome, e sem fazer esforços, decidiu rapidamente em silêncio que, onde quer que ele estivesse naquele momento, fosse ele quem fosse, teria que fazer o próprio jantar e ainda alimentar as crianças. Sim, meu Deus do céu, as crianças! O que fazer com as crianças? E foi assim que conseguiu pôr-se de pé. Agora, a plateia que deveria parecer aliviada está visivelmente decepcionada. A protagonista, estrela por natureza, ao notar os joelhos ensanguentados, sente amor. Um amor intenso e inexplicável. Está viva, muito viva. Não há mais medo, precisa berrar, e assim acaba por constatar que não tem mesmo voz. Um suspiro, talvez, e nada mais. Diante do desenrolar frustrante do espetáculo, as pessoas começam a dissipar, o sol já está mais baixo e a cidade, quanto mais escura, mais podre. Ela pensa novamente nos filhos, no momento com um aperto no peito e as emoções na contramão, quase todas elas ao mesmo tempo, mas antes mesmo de cogitar se dar ao luxo do desespero e encerrar de vez a pacatez, o caos se antecipa e a atinge: uma menininha come um cachorro quente sob a marquise do teatro de esquina, indiferente ao mundo. Ela se enche novamente de amor, apavorada, respirando a revelação de que as crianças não vão morrer de fome sem ela. Nem o marido. Talvez haja saudade ou recordação por um tempo, certamente haverá sempre comida na mesa, mas haverão também guerras, descobertas científicas, novos amores, eventualmente vão esquecê-la. Numa última tentativa de não deixar pra trás, tenta dizer seu nome, mas, no lugar dele, sai apenas uma tossida seca que ela entende como o sinal definitivo: não quer recordar mais nada. Muito pelo contrário, fará questão ela mesma de esquecer primeiro. Joga a bolsa de feira numa lata de lixo no canto da rua, assim mesmo, com tudo dentro, e sai caminhando na direção oposta dos carros, experimentando, a cada passo, uma plena paixão, maldosa e sem fim.

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