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O Primeiro Dia

A verdade é que foi complicado conter a aflição da noite anterior, principalmente para a mãe, os últimos meses foram difíceis, por isso a proximidade do fim daquele tormento parecia um sonho e era logo ali, no próximo amanhecer. O pai também já estava em seu limite, não tinha mais como arrumar desculpas para evitar a exaustão.

A ansiedade assaltava cada um da família de forma diferente, enquanto os pais desejavam ardentemente aquele dia, os filhos, por outro lado, queriam adiá-lo o mais que pudessem.

Independente da expectativa de cada um, o dia chegou e a guerra de egos e superegos foi deflagrada antes do relógio tocar. Os pais já esperavam a resistência, o marido ligou para o trabalho dizendo que se atrasaria. Depois ligou novamente, avisando que não poderia ir, precisava de tempo para assimilar a nova situação. A mãe segurava o choro o quanto podia, ela estava entre a euforia insana e o alívio redentor, um sentimento de que, apesar dos pesares, ela sobreviveu.

As crianças agarravam-se em suas colchas, cobrindo cada parte do corpo como se fosse um escudo impenetrável, ou o manto da invisibilidade, mas a mãe possuía o encanto para quebrar essa magia negra, sabia exatamente onde cada um estava e adivinhava suas disposições. Parecia algo cruel demais para submeter seus filhos, mas a natureza tem suas próprias regras para fortalecer as novas gerações e uma delas são os ritos de passagem, tão necessários quanto as “fézinhas” de fim-de-semana dos idosos.

O pai precisava de orientações, esqueceu o que e quando fazer, a mãe desdobrava-se, arrancando do fundo da alma os últimos suspiros de energia que lhe restavam, as crianças gritavam contra a água gelada no rosto.

— O que você está fazendo aí parado, homem de Deus? Anda, pega as mochilas! — as ordens, dignas de um general, não davam espaço para insubordinações.

E ele atendeu prontamente, havia um certo orgulho em atender a esposa, afinal eles precisavam se amparar mutuamente para o próximo estágio, algo que significava muito para a família. Todo material necessário já constavam dentro das mochilas, um total de quatro kits completos.

As crianças ainda se recusavam, faziam corpo mole, não movimentavam um dedo, elas parecem saber o poder que possuem nessa situação, ou talvez apenas estejam aproveitando os últimos momentos de forma plena. Há uma sabedoria em tudo que acontece nesse momento, tanto nas ações orquestradas dos pais, quanto às omissões passivas dos filhos.

O liquidificador se encarregava da trilha sonora, o ronco do motor nunca foi tão apreciado quanto naquela manhã, as frutas pareciam verdadeiras obras de arte, tão brilhantes e perfeitas estavam. O pai até pensou em furar um dos copos de iogurte, mas pensou que ia contrariar a esposa e desistiu, afinal a função dele é ajudar e não atrapalhar.

— Já colocou as meias? — ela gritava da cozinha.
— As minhas?
— O das crianças, você tá aonde?
— No banheiro.
— Larga o que tiver fazendo e  vem me ajudar aqui.

O homem não discute e corre em direção a origem da voz.

Enfim, entre gritos e gemidos, tudo corria dentro do cronograma implícito, daquele fatídico dia. É possível dizer que até com certa antecedência, já que antes mesmo do limite de tempo, todos já estavam preparados para receber o que quer que viesse àquela casa.

O sol tímido tentava impor suas cores atravessando as nuvens escuras. Não importa, nada seria capaz de impedir o que aconteceria logo a seguir. Os ponteiros do relógio, impassíveis, não se intimidaram com as pressões de caras e bocas ou bocejos, ele estava no ritmo que deveria estar. Apesar dos olhares incisivos dos adultos e a desfaçatez insensível das crianças. Por ordem da mulher todos estavam em posição militar em frente à janela, até o cachorro não ousava se manifestar naquele momento.

Um filete de suor escorre pela testa do marido.

— E se, por acaso,…
— Cala a boca, não quero saber de atrasos.
— Mas, amor… — o homem aponta para o pulso.

A mulher não se dá por vencida, ela continua firme em seu propósito, sabe que mais cedo ou mais tarde, tudo acontecerá da exata forma que deve acontecer.

Está tudo pronto, todos a postos, não há sequer uma falha, uma falta, uma abstenção. O congresso votou todas os projetos de governo, os ministros adiaram as viagens diplomáticas, a FIFA esqueceu a Copa do Mundo, o Papa não surgiu na sacada, o presidente não assinou nenhuma lei naquele dia, a NASA suspendeu os voos, todos estavam esperançosos de saber qual futuro os aguardava a partir daquele dia… primeiro dia.

Os segundos são cruéis, parecem horas, a fé da mulher teimava em se manter firme, mas até para ela havia um limite, o homem estava frustrado, cabisbaixo, por isso ela evitava olhar para ele.

Em seu íntimo as crianças queriam festejar mais essa vitória, não importa o dia de amanhã, hoje elas venceram.

Dentro do coração, a mulher recitava o mantra aragorniano “haverá o dia em que os homens terão medo, em que a coragem acabará, em que não teremos mais esperanças de dias melhores, mas esse dia não é hoje”, tudo bem, não é bem assim, mas a adaptação é cabível.

Uma lágrima escorre dos olhos da esposa, o horizonte continua inalterado, ela desmorona aos poucos. A voz do caçula é uma sentença de morte em seu coração.

— Mãe, posso comer a minha merenda?

Ela ia responder entre soluços, o que seria a admissão de uma derrota, mas seu marido grita.

— Chegaram, lá vem eles.

O ônibus escolar dobra a esquina.

20 respostas em “O Primeiro Dia”

Cara, que história criativa pra falar de algo que nos marcou de alguma forma. Quem não se lembra de seu primeiro dia de aula naquela “selva de concreto” chamada escola?

No meu caso, levei dois anos pra ter esse momento, e não foi fácil não. Antes destes dois anos, ainda tive uma forte crise na sala de aula por causa de ter corrigido uma professora do erro que estava fazendo em um verbo simples, acho eu, e sendo expulso da sala em seguida. Me lembro que minha mãe me levou pra casa e nunca mais voltei naquela escola. Só depois destes dois anos que passei em classe especial é que pude ter esta experiência de primeiro dia de aula.

É o frio na espinha que todos (ou quase todos) tem neste momento. O início de uma nova era de nossas vidas. A era escolar.

É isso. Até a próxima, meu amigo.

As crianças sentem um misto de euforia por novas aventuras e angústia por sair de perto dos pais, enfim, são mundos diferentes para diferentes perspectivas.

Caramba é muito criativo kkkk lembrei das minhas meninas no primeiro dia, a ansiedade e o desespero de não atrasar e como é bom. Kkkk Marcelo você cada dia nos surpreende com suas crônicas.

Muito show!!
Leva até à reflexão: eu simplesmente não lembro como que foi meu primeiro dia na escola… mas pros meus pais mesmo pode ter sido bem marcante.

Vixiiii tu sabe prender o leitor, fiquei ansioso pelo final até o último parágrafo, me senti um dos personagens na espectativa. Kkkk

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