Pela visão da padaria fechada, eu sabia que já havia passado das 22hr. O clima com sua indecisão rotineira, cansativa e paulista, oscilava entre ser frio ou quente para o momento e também para uma prévia do dia que viria à frente. Um mormaço noturno e odioso que eu sinto constantemente ridiculamente cobrindo minha pele e trazendo a sensação de insegurança (também) externa, estava presente.
Porém, ao olhar para o chão, meu primeiro pensamento foi de que eu estava, por acaso, encontrando algo valioso para algum outro olhar. Até me atentar e me agachar, enxergando então encima do “bem” alguns cacos de um vidro que possivelmente inteiro e estando em dupla com uma moldura, formava a casa da fotografia encontrada. E só ao resgatá-la da situação de abandono em que se encontrava, pude vê-la ferida, furada.
Muito bonita, uma moça negra se encosta em uma senhora de pele branca, as duas olham para a foto. Há uma ternura no olhar da senhora que acompanha um sorriso tímido, há beleza e jovialidade na senhorita, esta que também demonstra carinho de uma forma mais oculta. Pelo contexto: rua escura, fim de noite, vidro pousando encima do item abandonado ao meio-fio; concluo que uma das ou as duas ou sei lá, alguém que as conhecia não queria encontrar (nunca mais) o “bem”, sendo assim, eu sendo ladra ou curiosa, agora ele me pertencia. Agora ele me pertence.
Então, como meu e sem histórico, eu passo meus dias ocupando meu cérebro com as histórias que podem lhe anteceder. Teria a senhora se decepcionado seriamente com a jovem e em uma briga ou surto solitário jogado fora o retrato? Em uma era onde se é não raro, mas mais difícil encontrar fotografias reveladas, e a fotografia não parecendo ter sido revelada há tantos anos, imagino que as duas tinham algo tão intenso que optaram por uma prova física para ser guardada. Os furos não são profundos, são furos que formam uma espécie de braile, mas não perfuram a fotografia. O ódio tem limites? As vezes penso que amor e ódio estão intimamente ligados por dependerem (não sempre, mas muitas vezes) da intimidade, do conhecer. Se foi isso, por que então a senhora não teria rasgado logo a foto ou queimado? Pelo menos, com a caneta que usou para furar, perfurado? O amor pode tocar no ódio, mas o ódio não pode ultrapassar o limite do amor? Mas que amor é este que não se permite ser perfurado, mas não pode fazer nada sobre ser abandonado?
No entanto, não irei considerar o erro um ato possível apenas aos mais jovens, pois sendo também jovem, mas não o suficiente para não entender que a idade não te torna imune à imperfeição, considero a possibilidade de a magoada da questão ser a moça. E em um momento em que descartava coisas, viu que a inutilidade em manter o objeto de (já vencida) afeição também é uma coisa descartável. Será possível a afeição ter validade? Há uma eternidade no sentir, isso há, mesmo que o sentir mude, a eternidade permanece. O que quero dizer é: você sempre sentirá algo por todos aqueles que já te atravessaram.
Entretanto, nenhuma história que inventei pôde me explicar o sumiço da moldura. Por isso, eu sozinha me sinto no direito de concluir que a estrutura foi reutilizada. Quebraram o que era transparente e sujeito à uma vida findável, mas reutilizaram a moldura por ser muito bonita ou muito boa, não importa. O que importa é conseguir ver que o que protege o coração é mortal, mas sua estrutura não. Os rostos mudam, mas não o sentir que ocupam (ou vagam). Onde estará agora essa moldura, sustentando qual fotografia protegida por um vidro que uma hora ou outra, como seu antecessor, se quebrará? É a inevitável fluidez (ou liquidez, pois eu sei que Bauman não fala(va) apenas de relacionamentos amorosos) dos dias e suas ações, reações, relações. (Ainda, insisto: será possível?)
Pensando bem, pode ser que o retrato caiu de um caminhão de mudança e sua moldura devia estar no fim da rua, pois com o impacto pode ter parado longe da foto, do vidro, e eu que, por conta do escuro, não a vi. E agora essa senhora ou essa moça esteja lá naquela rua perguntando a todos e procurando pelo coração perdido, mas encontrando apenas os estilhaços da caixa torácica. Pode ser que além de ladra, eu seja má por ter pego pra mim e não ter deixado lá onde perderam o afeto para poderem buscar.
Porém, se eu não pegasse, outro alguém pegaria. (Certo?)

escrevo de dentro, por fora e entre as limiares de pedras (da selva); “Entre estas árvores que inventei e que não são árvores, estou eu.” – R.B
viva há pouco mais de sete mil dias grunhindo de são paulo, sp, brasil.
6 respostas em “O insumo está vivo e morno ao meio-fio.”
Uma crônica muito bonita. Gostei muito da reflexão sobre amor, afetos e fotografias. Ainda não tinha pensado sobre uma possível validade de afetos e fotos, então como alguém que adora tirar fotos para guardar momentos e pessoas e depois olhar quando sentir saudade ou para lembrar, esse texto vai ficar na minha cabeça por um tempo. Textos que são capazes de fazer isso me lembram do que é arte e do que ela é capaz. Parabéns pela crônica 🙂
lara, eu já li que quem ama a palavra não morre. se realmente for assim, quem guarda a imagem vai além de imortalidade alcançando o controle da perspectiva!
(muito feliz com sua vinda <3)
Pegaria!!!
“ você sempre sentirá algo por todos aqueles que já te atravessaram”.
Amei!
dificil ser inerte com o coração flechado, mesmo estancado o sangue não é inexistente. e sangrar nem sempre significa sofrer, apenas viver! amei que você tenha amado, alexandra!
Uma boa crônica aqui e gostei da parte das fotografias. Me lembrei de uma aula do curso de História que fiz na UFPEL e aliás me formei em 2003, onde a professora falou sobre fotografias e memórias.
E disse no fim daquela aula que rasgar ou jogar fotografias agora é como se matasse a pessoa pela segunda vez.
E a memória que esta deixou. Um grande abraço.
concordo que decidir esquecer é sempre assassinar, loucura pensar que criamos os afetos e decidimos o quanto duraremos nestes, não é?