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crônica

“Morning pages” (parte 2)

Este é o segundo de uma provável série de três textos que pretendo publicar este ano sobre Morning Pages (se você quiser ler o primeiro, acesse-o por aqui). No texto passado, eu escrevi: “ainda quero falar sobre esses objetivos e/ou efeitos das páginas matinais num segundo texto. Que tal?” Bom, aqui estou eu.

O texto que me ganhou em definitivo para essa atividade foi o “Páginas Matinais (para sair do subsolo)”1, do Pedro Sette-Câmara. Ele menciona que a idealizadora do exercício, Julia Cameron, “diz que elas [as Páginas] libertam a sua criatividade”. Isso já não é pouca coisa! Mas para o Pedro houve outros benefícios:

“O primeiro e mais óbvio foi o de esvaziar a cabeça o suficiente para eu poder trabalhar. Costumo acordar com a cabeça a mil, com uma séria dificuldade de concentração. A página matinal me acalma, me centra”.

Comigo é a mesma coisa. Eu também acordo quase sempre com a cabeça a mil (também vou dormir com a cabeça a mil quase sempre). A ideia de aprisionar os pensamentos num local seguro para poder começar o dia foi sedutora. Eu já tinha visto esse artifício em algum lugar, mas como mera estratégia de “gestão”: você joga num post-it inquietações mais imediatas para poder se concentrar no trabalho. Isso é útil, mas as Páginas servem para muito mais. Um segundo objetivo mencionado no texto é o de fazer das Páginas um lugar de investigação dos nossos desejos, uma espécie de exercício de autoconhecimento – que o Pedro chama de “desmistificação”:

“Escrevendo espontaneamente, a pessoa que eu acho que eu quero ser não sufoca a pessoa que eu de fato sou, e assim posso me conhecer melhor. Fico sabendo o que de fato está me incomodando e o que realmente quero.

Essa é, para mim, a pérola do exercício. Deixe-me explicar melhor, usando uma analogia parecida com a do próprio Sette-Câmara2: você acorda, digamos, num sábado de manhã. Seus planos para o dia são: ler, escrever, fazer o almoço, visitar seus pais, ir ao supermercado, estudar xadrez, e terminar o dia assistindo àquele filme com sua esposa. Há motivos legítimos para cada um desses planos, desses desejos. De repente, você pega o celular e se mete em uma discussão sobre a guerra entre Israel e Palestina. Aí você percebe que não sabe muito sobre o assunto e se mete a pesquisar o tema em vídeos de influencers durante toda a manhã; mas durante as pesquisas aparece o novo reels daquele chefe, e você percebe que não viu os últimos dez, e passa o início da tarde salivando com a comida na tela, o que te lembra do almoço, que, claro, você acaba pedindo no iFood pouco antes de decidir que, enfim, é hora de aprender a cozinhar como aquele chefe, e lá está você olhando a mensalidade das escolas de gastronomias, o que te lembra do aperto financeiro daquele mês, o que te levará, finalmente, a estudar se vale a pena ou não investir em IPCA+ 2045 até o meio da tarde…

Percebeu? Nossos desejos geralmente são fracos. E nós geralmente temos nossos desejos fracos sequestrados por desejos alheios que têm pouco ou não têm absolutamente nada a ver conosco3! É claro que a guerra no Oriente é importante. Mas o que eu tenho a dizer sobre isso? Na prática, eu não estaria usando meu tempo, minhas energias, minhas reais habilidades mais dignamente fazendo outras coisas em vez de discutir geopolítica?

A ideia é que as Morning Pages sejam um reduto onde você deposita esses desejos alheios que te inquietam até que você consiga voltar a si e dizer: “espera um pouco; não é isso que eu quero! Eu quero ler a droga daquele livro e quero sinceramente tirar duas horas estudando essa maldita Abertura Ruy Lopes”! Nesse sentido é que “a pessoa que eu acho que eu quero ser não sufoca a pessoa que eu de fato sou“. E deixar quem eu não sou de lado, abandonar quem eu acho que sou, e conseguir ter uma visão melhor sobre quem eu realmente sou, bom, isso me parece bem útil.

Assim sendo, as Páginas se mostraram a mim como um “exercício de sinceridade e coragem”. Tanto é que numa das entradas do meu caderninho verde resolvi investigar o que eu realmente gostaria de fazer caso não tivesse nenhuma das imposições de um dia comum. Isso me deu alguma clareza sobre onde devo depositar minhas energias quando eu tiver um tempinho. Em outra entrada, passei meia hora de uma manhã de terça-feira pensando no porquê de eu querer ler, a partir do fim de agosto, Homero e Virgílio. Ora, pode ser só por mera vaidade? Pode ser só para cumprir um checklist que nada tem a ver comigo? Esse é um desejo que, sem querer, eu tomei emprestado de alguém, ou eu realmente quero ler essas coisas velhas pra dedéu?

É claro que eu não vou responder a que conclusão cheguei. Estou nessa só há uns 70 dias. Tenho muito que aprender sobre o exercício. E sobre mim.


Notas:

  1. Disponível em: https://www.instagram.com/p/C6oN0bZO4hu/. ↩︎
  2. Que ele fez em algum outro lugar. Provavelmente, num story; o que significa que se perdeu no limbo. ↩︎
  3. Eu quero deixar absolutamente claro que nada disso é ideia nem conclusão minha, ok?! Aliás, acho que essa coisa de desejo tem muito, muito mesmo de René Girard. Mas eu não vou me arriscar a dizer mais do que isso. A referência imediata é mesmo aquele link ali em cima na primeira nota. ↩︎

3 respostas em ““Morning pages” (parte 2)”

Escrever é a única coisa que consigo fazer de melhor e como tu disse, Misael, acalma bastante minha cabeça e fico com vontade de seguir escrevendo, mas tenho que enxergar a realidade existente em minha volta.

Não é fácil, mas a gente acaba se acostumando a fazer coisas que nada tem a ver conosco. Será que estamos meio que pavlovianos nessa hora?

Reflexos condicionados, talvez?

Seja como for, precisamos de recursos como a escrita pra se manter sãos neste mundo tão biruta.

Que nossos desafios continuem de pé, meu amigo. Haja força de vontade pra resistir as tentações diárias a nossa volta.

É isso. Um grande abraço e até a próxima.

P.S: Desculpe pelo atraso, mas te desejo de todo coração um Feliz Aniversário e que essa data se repita por muito e muito tempo.

Mario, meu amigo. Sempre muito gentil com as palavras. Obrigado pelo feedback de sempre no texto. Obrigado pelas felicitações carinhosas. Bom te ter por aqui! Um abraço! Fica com Deus!!

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