Eu já sabia que teria que lidar com ela em algum momento. Estava me preparando para isso. Tenho lido e ouvido falar sobre como a dona Inteligência Artificial pode ajudar a melhorar a nossa vida, a nossa rotina. Você pode pedir para ela elaborar determinado trabalho ou atividade para você ou lhe informar sobre assuntos de seu interesse e voilà! Recebe tudo mastigadinho. Dizem que ela consegue até interpretar o que você está a fim de fazer, ver e ouvir.
Vocês vão me achar implicante, mas já experimentei o ChatGPT. Pedi para ele organizar uma atividade para aplicar em sala de aula com meus alunos, para me dar uma ideia de conto, ou crônica. Mas, convenhamos, as respostas que aparecem são tão rasas, repetidas ou distorcidas que resmungo logo: “Que diabos! Estão vendo aí que não tem como esse troço substituir os humanos?”
E hoje, exatamente hoje, tive uma experiência muito ruim. Ao abrir o Word, do nada, apareceu uma mensagem do tipo: “selecione o ícone ao lado ou pressione Alt + i para rascunho com o Copilot”. Sério isso? Quem diabos é Copilot e por que eu pediria a ele para escrever um rascunho de qualquer coisa para mim? Ranço. Antes a gente que buscava os serviços da dona Inteligência Artificial, agora ela está invadindo as nossas vidas pelos meios mais obscuros e não estamos nos dando conta. O jogo virou.
O Word era, para mim, como um caderno físico. O programa mais analógico do meu computador. Abrir um arquivo novo era como abrir uma caderno e encontrar a folha em branco todinha minha, pronta para que eu deixasse fluir as palavras. Mas agora o senhor Copilot quer me ajudar. Vejam vocês.
E olha que eu já andava invocada com a dona Assistente de IA do meu Adobe Acrobat Reader, que fica se oferecendo para fazer resumos dos documentos que abro. Ora, nem ler mais os documentos por inteiro posso? Qual a dificuldade? Ela presume nossa falta de tempo, de interesse ou de concentração?
O Whatsapp não fica atrás. No símbolo de busca, logo lá em cima da tela, você encontra: “Pergunte à Meta AI ou pesquise”. Isso mesmo, antes do “pesquise”, a primeira opção é recorrer à inteligência artificial. E ela, não satisfeita pela imposição de sua presença, ainda nos dá algumas ideias sobre o que a gente pode estar precisando: “Quero escrever uma mensagem de aniversário”; “Quero um novo filme para assistir”; “Quero me preparar para uma entrevista.”
Sinceramente, por que a dona Inteligência Artificial nos trata como se não tivéssemos autonomia para escrever um texto, capacidade para leitura de textos mais longos ou criatividade de fazer buscas por assuntos de nosso interesse? Que tempos malucos são esses? Revoltante!
Dia desses, estava contando para os meus alunos sobre o meu mestrado, feito antes dessa invasão alienígena. Uma de minhas fontes de pesquisa eram uns manuais de construção portugueses escritos entre os séculos XIX e XX, os quais eu consultava no Real Gabinete Português de Leitura, localizado no centro do Rio de Janeiro.
O prédio é belíssimo, em estilo neomanuelino (para os entendidos de arquitetura), e a área para consulta fica no salão central, de pé-direito altíssimo, coberto por uma cúpula de vitrais coloridos e rodeado por estantes de livros que vão do piso ao teto. Eu passei tardes inteiras ali, durante uns três meses, fazendo anotações e transcrevendo trechos dos manuais no meu caderno. Tudo à lápis, porque não podia entrar com caneta. Ninguém se ofereceu para escrever, ler e resumir, tampouco pesquisar por mim. Ainda hoje tenho a memória de minhas tardes lentas no Real Gabinete e os cadernos manuscritos na gaveta do meu escritório.
Tempos idos. Hoje os manuais estão disponíveis na internet, em arquivo pdf. Você pode baixar, abrir e pedir para a Assistente de IA resumir para você. O resumo você pode jogar no Word e pedir ao Copilot um rascunho para a sua dissertação de mestrado.
Caminho sem volta. Acabou-se o que era doce.
P.S.1: Em visita recente ao Museu do Amanhã, localizado no Rio de Janeiro, uma das atividades interativas do museu consistia em um teste que te classifica quanto à sua relação com o avanço das tecnologias e o futuro. Fiz o teste, o meu resultado é o título da crônica.
P.S.2: Já a imagem da crônica foi gerada pelo Copilot. Desculpem-me, não resisti.

Carina Mendes é uma carioca que rodou um pouco por aí e atualmente mora em Cabo Frio/RJ. É arquiteta e urbanista de formação, servidora pública, trabalha na área do patrimônio cultural, é professora universitária. Depois de mestrado e doutorado, decidiu navegar pela escrita criativa. Tem feito cursos, publicado minicontos, contos e crônicas em coletâneas e em seu site.
3 respostas em “Marciano melancólico”
Marciana, resistiremos
Marciana, resistirem.
Minha menina sempre escrevendo coisas que nos faz pensar, em um estilo que não perde a mão e nos leva para caminhos que a IA está tentando nos tirar. Adorei!!!!!!