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Kintsukuroi

“A hora de escrever é o reflexo de uma situação toda minha. É quando sinto o maior desamparo. ”

Clarice Lispector


Não sei como anda a sua mente no período pós-pandemia, mas a minha, caótica e desorganizada (ué, nada mudou então), fica me lançando pensamentos perturbadores ao longo do dia. Será que já superamos totalmente esse trauma coletivo, que eliminou as demarcações de nossa “rotina tradicional” (leia-se casa / trabalho / escola e tudo de novo)? Todo mundo vivenciou a pandemia à sua maneira (em diferentes barcos, até em diferentes tempestades), e ao menos um aspecto nos irmanou: ficamos à deriva, vivendo dias iguais, inertes em nossa desesperança, rolando pedra acima, feito Sísifo.

O estilhaçamento da rotina retirou algo importante, que, há muito tempo, o budismo já aconselha a retirar: “nosso chão”. A insegurança só nos incomoda porque AINDA não entendemos que a segurança é uma ilusão. E uma pandemia, na era da globalização e da conectividade, não poupou sequer um ser vivo na face do planeta. Fui abalada. Você foi abalado. Nossas rotinas se quebraram em mil pedaços, diante de nossos incrédulos olhos. Fragmentos de dias que se arrastaram e nos marcara para sempre. Dias iguais mas peculiares. Nunca antes vividos. Dias sem liberdade, em que a casa-refúgio vira casa-prisão. Sair. Para onde? Hoje, o legado pandêmico se reflete no trabalho, com muitos definitivamente em “home office”, e em sala de aula, sobretudo no ensino fundamental, pois muitas crianças foram alfabetizadas em casa.

Ainda no período crítico, comecei a ler sobre o “mundo pós-pandemia”, caindo na falsa dicotomia: um “novo normal” ou “nada vai mudar”? O historiador Yuval Noah Harari localizou a pandemia como marco civilizatório: algumas mudanças não retrocedem. É como o mundo pós-guerra. Aristotélica desde sempre, vou pelo caminho do meio: tudo vai mudar… um pouco. Nada passa ileso. Conforme-se. Quando crises de entrecruzam, algo respinga invariavelmente em você. Falo em saúde, educação, política, economia, liderança. Escolha sua crise e se dirija ao caixa, por favor.

Como uma xícara de cerâmica japonesa, ao estilo “kintsukuroi”, junto as peças da nova rotina e vou colando como dá, quando dá. A cultura japonesa, via tal técnica, valoriza a imperfeição, restaurando as peças quebradas com ouro, o que confere detalhes únicos. Talvez a pandemia faça justamente isto. Não busquemos a xícara original. Procuremos a beleza da nova peça. Foram justamente as quedas que a forjaram.

2 respostas em “Kintsukuroi”

Uma crônica muito bem concisa. No meu caso, a minha mente não mudou muita coisa porque já é confusa desde sempre.

Pelo menos, minha rotina durante a pandemia foi até melhorada por causa da diminuição dos sons que afetam muito minha cabeça. E do silêncio que me trouxe uma paz que nunca havia sentido antes.

Precisamos montar tudo, é verdade. Mas a pandemia nos mudou pra sempre. Nunca mais seremos os mesmos, ou melhor ainda, citando o grande Cesar Passarinho, um dos melhores cantores de musica gauchesca, mas o que foi nunca mais será.

De caco em caco, uma nova vida se monta. É isso aí.

Um grande abraço.

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