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Karamázov, G.H. e bruxismo

Era apenas uma limpeza dentária rotineira. Então, quando o dentista disse que eu estava com bruxismo, minha mente devaneante pensou em alguma doença relacionada aos tribunais de Salem ou ao Ronaldinho Gaúcho. Não demorou para eu descobrir, contudo, que se tratava de uma palavra muito mal escolhida para identificar o hábito de ranger os dentes, especialmente durante o sono, ocasionando, assim, seu contínuo desgaste.

Ou seja, não bastassem os inúmeros desafios da rotina, a batalha para dar conta dos afazeres diários, dos boletos vencendo, dos grupos de Whatsapp inquietos, dos compromissos no trabalho e na família, além dos problemas vários que nos cercam, os desastres climáticos, o estado de Israel, a violência policial, enfim, tudo aquilo que faz a gente apertar os dentes com vontade e consciência durante o dia, agora também deveríamos nos preocupar com o boicote involuntário dos nossos próprios molares no momento em que nos encontramos mais vulneráveis e frágeis? Isso é coisa que põe qualquer um maluco. E eu juro para vocês que venho tentando sobreviver a este apocalipse escandido que chamamos de século XXI. Pratico exercícios. Como saudável. Reservo um tempo para atividades prazerosas. Mas de que adianta tudo isso, se meu corpo, sorrateiramente, se aproveita do instante em que estou engenhando meus sonhos, para corroer meu cálcio e diminuir minha mordida?

Bom, se o problema que se apresentava para mim já era horrível, a solução dada pelo meu dentista tornou-se trágica: eu teria que usar uma placa de bruxismo. O médico me informou isso enquanto tirava de uma caixa ovalada, cheia de furinhos, uma meia lua de acrílico que, segundo o sádico, agora faria parte de todas as minhas noites, talvez de alguns dos meus dias, caso minha situação fosse grave. E eu, que chegara no consultório na expectativa de uma dose de flúor e outra de Listerine, voltava para casa com um instrumento de tortura medieval na mochila, cujo propósito deveria me fazer dormir melhor.

 Como eu contaria isso para a Lu? Imaginem. Pela manhã, ela tinha um marido plenamente funcional no travesseiro contíguo. À noite, contudo, se depararia com um sujeito atrofiado no precipício da cama, que agora falaria como o Patolino e cuspiria mais perdigotos que o Slavoj Žižek. Pra piorar, eu não tinha nenhum pijama que combinasse com aquela placa opaca, nem chinelos de dormir que ornassem com aquele estilo que poderia ser consagrado por algum teórico da moda como: “quase esportivo/ muito depressivo”.

Enquanto eu esperava a Lu chegar do trabalho para contar a novidade – no caso, que seu marido a partir de hoje, se quisesse manter a última dentição, precisaria dormir como um boxeador derrotado –, pensei como mais uma vez a cultura humana falhara conosco. Não havia qualquer referência poética ou narrativa para aquilo que eu estava vivendo. Nenhum romance da Clarice, mural do Rivera, livro do Kafka, ou música dos Beatles que mencionasse os conflitos e tensões ocasionados pelo bruxismo. Se o assunto não tinha o drama de alguém que come ou vira uma barata, havia de insuflar outras coisas terríveis que podemos nos tornar ou colocar na nossa boca. Eu era a prova viva de que o negócio tinha pathos suficiente para dez romances, cem contos e mil canções. Se o mundo fosse justo, teríamos ao menos uma gravação de “Hey Jude” com o Paul McCartney cantando com a voz do Frajola, afinal um sujeito controlador e perfeccionista como ele certamente tinha o hábito de friccionar os caninos.

Pensei nos filmes que venceram o Oscar e nos que se consagraram em Cannes. Nas séries da MAX e nos mais assistidos do YouTube. Nos épicos da antiguidade clássica e nos novos lançamentos da ficção científica. Não havia nada sobre minha situação. Eu era um cyborg melancólico com uma prótese fria como metal na boca hidrófoba, a folhear livros cheios de lasers, naves espaciais e buracos de minhoca, quando o buraco maior era aquele causado pela grave lacuna no cerne das nossas representações. Mais uma vez, a história humana se esquecera de nos preparar para o cotidiano. Depois ninguém sabe por que viramos esta manada insone que passa a vida a ruminar as próprias gengivas.

Então, é justamente nestas horas que entendo por que sou cronista. Porque, quando nossa tradição estética inteira fracassa na missão de nos preparar pra o dia a dia, para aquilo que, na prática, realmente importa, compete a um de nós assumir a responsabilidade de escrever uma crônica que fale sobre o que efetivamente compõe nossa existência. Sim, cabe a nós enfiar à força, na estante das realizações artísticas humanas, ao lado do “Let it be” e da “Noite estrelada”, junto com “A rosa do povo” e com “Ladrões de bicicleta”, uma página dedicada aos que foram invisibilizados. E a de hoje é direcionada a vocês que têm bruxismo. Que ela ocupe seu lugar de suma importância nas mais altas realizações do espírito humano.

Portanto, sem mais rodeios, hoje o que posso oferecer é isso: tenho apenas duas mãos pequenas, o sentimento do mundo e trinta e dois dentes rangendo entre os lábios. Alguns preferirão “A paixão segundo G.H.” ou “Os irmãos Karamázov”, é claro. Mas outros, diante do diagnóstico terrível do dentista, mostrarão risonhos seus dentes frágeis, pois lembrarão do Paul McCartney cantando “Nanana na. Nanana na.” com uma meia lua de acrílico na boca.

Uma resposta em “Karamázov, G.H. e bruxismo”

Cara, a única coisa que posso te dizer é encarar o tal do bruxismo de frente mantendo se puder um sorriso no rosto (se é que dá pra sorrir com tanta ruindade e podridão cercando nosso mundo e nossa rotina, né?).

Mas nada se compara ainda ao bendito (ou maldito?) tártaro (e olha que não estou falando do povo homônimo da Ásia!!) que nos obriga a ir ao dentista aturando o barulho da broca no processo.

Agora querem acabar com os dentes rangendo de ansiedade? E onde será nossa válvula de escape?

O jeito, meu amigo, é sentar no trono (não necessariamente no banheiro) e ficar com os dentes rangendo até a morte chegar. Ou cantar Hey Jude com a voz de um marreco.

A escolha é nossa. Pelo menos por enquanto.

É isso, Daniel. Um grande abraço e até a próxima.

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