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Feliz dia, Seu Zé! Uma crônica ao meu avô

“Era florada, lindo véu de branca renda
Se estendeu sobre a fazenda qual um manto nupcial
E de mãos dadas fomos juntos pela estrada
Toda branca e perfumada, pela flor do cafezal”

(Flor do cafezal, de Cascatinha & Inhana)

Da Vila Novaes, lá no grande sertão paulista, Zé desabrochou na terra. Em meio aos botões florais do café que cobriam de branco a terra roxa, sua caminhada começou naquelas bandas onde o cheiro da chuva no cafezal embriaga a alma. Poderia ser mais uma história de filho de imigrantes espanhóis que vieram com a promessa de abundância do café, ou uma estória batida de novelas, filmes ou livros. Mas não. É meu avô, merece um registro neste mês de comemoração do dia dos pais. A partir de várias vozes, teci esta crônica.

A jornada de Seu Zé começou de roça em roça, da Guaporanga até os rincões do Paraná, e consigo levou sua Maria, aquela que conhecera entre terços, bailes nos sítios e encontros na igrejinha rural. Com apenas um ano de casados, uma filha de quarenta dias, dirigiram-se a São Carlos do Ivaí. Da fome daquelas bandas, do desespero do prato vazio, eles perseveraram. Cantar juntos, entre a florada do café, era o alento e conforto em meio a tanta miséria do campo.

De terra em terra, sem ter seu cantinho para cultivar e semear, foram se instalando onde podia garantir o mínimo, a comida. Quando o dinheiro do campo não vinha, com o carrinho de bucheiro em mãos vendia miúdos pela cidade. Os restos dos frigoríficos garantiam algum sustento.

 Se a vida não lhe dava o sustento e as alegrias da abonança, o nascimento das filhas era a felicidade que necessitava. As apostas entre ele e cunhados para saber se viria um menino causava um sorriso contido. No entanto, o mundo lhe deu cinco meninas.

Do sítio recém-comprado pela sogra veio a plantação de café que garantiria o sustento e a promessa de fartura. A chuva naquele ano veio. Veio para regar sua esperança e das mulheres que já contavam com melhores ares em uma terra tão acostumada às chibatadas nos que nada tem.

Venda garantida, promessa de dinheiro no bolso. Mas sua bondade não estava para os vícios do mundo. O comprador se foi sem pagar. Um ano de podas e retirada dos frutos terminou em seu fracasso, sobrou o desalento, a descrença e ainda filhas para alimentar.

Correu, teve que correr para voltar ao sertão paulista. Em 1970, depois de dez anos, retornou aos braços do pai, e de lá recomeçou. Vila Novaes, Guaporanga, Paraná, e então novamente nos sertões paulistas. Caminhada pavimentada pela dor e suor daquele que sempre esperançava.

Em uma madrugada fria, aquelas que o sereno se assoalha entre o chão e as árvores, sua esposa partiu. Clementina era o destino de ida. Com mais três filhas, e contrariada pelo Seu Zé que a pediu para ficar, ela se foi. Partiu para não mais voltar. Não retornaria para aquele lar. Lar de miséria, mas lá se conformava uma família. Maria nunca mais voltou às geadas da roça, ao orvalho que ensopava o pé e à plantação de café e sua semeada. Sua voz nunca mais foi escutada entre os pés de café. O acaso silenciou sua cantoria.

Aquele ano de 1976 nunca fora esquecido. Dos destroços do ônibus, as pequenas viram a mãe partir. O toque sutil dado pela quarta filha em seu cabelo, o último atrito de dois corpos que se despediam, não a trouxe de volta.

A lembrança dessa tragédia ainda é motivo de muito choro entre as cinco. Como um tabu, esse assunto foi pouco compartilhado, cada filha se conformou da maneira que podia. Cada uma teve que escolher um canto entre a casa e a roça para se consolar, chorar e rogar praga aos céus.

Apesar de culpá-la por ter partido com seus singelos trinta e seis anos, Seu Zé não podia titubear. Seu luto, somado à tristeza de não poder garantir um mero caramelo às filhas, fazia-o desanimar e chorar escondido na cama então vazia. O choro o acompanhou pelo cafezal e também nas noites em que se pegava lembrando-se da esposa.

Minha mãe, com apenas dezesseis anos, viu sua infância se esfacelar. Foi jogada à vida adulta com as responsabilidades da casa e o trabalho na roça. De irmã e filha, o destino a empurrou também ao papel de mãe. Papel precoce e nunca quisto, aliás. Também tinha suas dores da adolescência que apenas uma mãe poderia amparar. Queria Maria para compartilhar suas aventuras de moça, e também vê-la no primeiro banco da igreja quando se casou.

Aos poucos Maria foi se dissipando das fotos e dos assuntos nos natais em família, e virou lembrança. Lembrança para aqueles que conviviam todos os dias com ela. Lembrança para as filhas que já não mais se recordavam de seu cheiro e do abraço afetuoso.

Com seu violãozinho e suas filhas ao redor, Seu Zé era levado pelas linhas da saudade para onde Maria estava. Lugar distante, porém seguro. A partir de então, seu nome nunca mais foi mencionado, exceto quando disse a um amigo que sua penúltima filha lembrava Maria. Seguiu, mesmo com o dinheiro não chegando até o fim do mês e o prato não enchendo como queriam. Rejeitou qualquer comentário sobre deixar suas duas menores serem criadas por outro familiar ou dá-las para um lar onde pudessem comer.

O cafezal refugiou sua dor, curou suas mágoas e também apresentou novos caminhos. Aqueles dias de almoço na roça, compartilhados com as filhas, foram deixados para trás para recomeçar. Em 1980, instalou-se na cidade e começou a trabalhar como gari. Se o campo o fez desgostoso, foi na cidade que viveu a tranquilidade de comer sem se preocupar se a fome viria no dia seguinte.

Como gari, foi homenageado por minha irmã mais velha, naquela época na terceira série, com uma redação vencedora de um concurso de um jornal local no dia do trabalhador. Seu trabalho digno muito nos honrava. Sua vida sofrida, do campo até às ruas da cidade, as quais limpava com muito zelo, era motivo de orgulho.

Com seu escovão saia pela rua limpando. De vez em quando passava em nossa casa para tomar um belo café. Nossas conversas eram sempre iniciadas com o pedido de benção. Algo natural quando o encontramos, resquícios da tradição católica. Pode soar patético ou fora de moda para os jovens de hoje, mas eu e minhas irmãs ainda utilizamos o “bença, vô” quando o vemos.

Quando sua última filha partiu, casando-se em um dia de feriado, ele chorou. E chorou pela primeira vez diante delas. Era o último choro profundo, uma mescla de dor da partida e também de dever cumprido nos cuidados como pai solo. Compartilhou a angustia com aquelas que com ele viveram no escasso: “Eu cuidei de cinco filhas, e hoje estou só”. Voltou a estar sozinho em sua casinha azul.

Os vícios de meu pai fez com que minha mãe saísse com os três filhos de casa. Foi a casinha azul de madeira do meu avô que nos abrigou. Naquela casa de madeira, com seu azul desbotado, eu, minha mãe e irmãs fomos acolhidos. E foi de lá que todos nós recomeçamos. Meu avô, aposentado e com cabelos bem-feitos à base de trim, encontrou um novo amor. E nós encontramos nosso caminho.

Seu sonho de ter sua própria terra, um território para chamar de seu, nunca se realizou. Os anos de roça nunca lhe garantiu seu direito à terra, direito que deveria ser garantido a todos do campo. Das filhas veio seu maior presente, a construção de uma casa de alvenaria, agora com piso de cerâmica e uma cama confortável. Deixou a pequena casa azul, ainda em pé, de recordação de um passado sempre presente.

Hoje com oitenta e quatro anos, apesar de não ter um celular, canta suas músicas caipiras prediletas ao som de uma Alexa, acompanhado da mulher que o faz feliz. De coração duro, austero e protegido em sete chaves, a velhice o amoleceu e deu alegrias que a vida nunca tinha lhe dado antes. De história ilibada, de caráter inquestionável, hoje é elogiado por ter vencido na dor, vencido com mais cinco bocas para comer. É por ele que ainda nos reunimos todos os natais, é por ele que voltamos à pequena Braúna.

Muitos celebram e exaltam pessoas na morte, hoje quero exaltar a vida. A vida do homem que triunfou no papel tortuoso de existir na adversidade. Hoje ele pode dormir tranquilo, num lençol quente e com cheiro de lavanda, com a sensação de dever cumprido. Sei que não será eterno, mas esta crônica é para sua imortalidade em nossas lembranças. Neste mês de agosto não quero esperar para manifestar o amor, este sentimento nunca externalizado pelo meu pai. Feliz dia dos pais, do avô, do tio e do bisavô. Feliz dia, Seu Zé!

12 respostas em “Feliz dia, Seu Zé! Uma crônica ao meu avô”

Parabéns, texto emotivo, exemplo de vida. Muito orgulho do meu pai e de você. Colocou nesse texto nossa história de vida. Muita luta carregada de amor. Te amo. Parabéns ❤️

Bem, pouco posso dizer a não ser que essa história do seu avô é cheia de superações e certamente deixará um legado muito importante pra tua vida.

Por isso que digo sempre e que parece que as pessoas não querem acreditar nestas palavras, mas o que vale é o legado, não o lucro.

E seu avô corrobora minha opinião. Meus parabéns e feliz dia dos pais (e do avô que também é pai).

Até mais.

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