Será que gostar de ir à feira pode ser comparado a um hobby como o colecionismo, a observação de pássaros, os jogos de tabuleiros, o ciclismo e tantos outros passatempos? Pergunto por que acredito que ir à feiras era a atividade favorita de minha mãe, depois de estar junto de nós, a família, suponho, se tivesse que fazer uma escolha.
Que bobagem, D. Heide, minha mãe, nunca precisou escolher entre ir à feira ou ficar com os filhos, ela não cogitava essa possibilidade. Ela amava ir à feira, então, nós, seus filhos e filhas, também íamos! Nascemos dentro desse hábito familiar, em todos os sentidos, aprendemos a andar, falar, brincar, indo à feira com ela. Minha mãe ia à feira e levava a família!
Éramos quatro filhos, dois casais, como as pessoas diziam de ‘boca cheia’ naquela época: duas meninas e dois meninos, como se somar quatro filhos (dois homens e duas mulheres) fosse o número perfeito para uma família completa e feliz. Acrescente-se a isso, o fato de termos nascido, simetricamente, organizados numa alternância perfeita entre ‘meninas’ e ‘meninos’. A simetria começa e termina nessa ordem de nascimento: a primeira a nascer foi minha irmã Clara, depois, meu irmão Roberto, em terceiro lugar, eu e, em quarto e último lugar, meu irmão Romero.
No discurso idealizado dos casais amigos contemporâneos de meus pais dos anos de 1960 e 1970, esse número de filhos de ambos os sexos era um presente dos céus como um prenúncio da harmonia e felicidade familiar. Na real, no entanto, tivemos as mesmas alegrias, dificuldades, conflitos, brigas e seja lá o que quer que signifique convivência fraternal. O mundo não era e nem é perfeito e, muito menos, nós quatro. O estudo da constelação familiar que o diga.
Nas idas à feira, as diferenças de temperamento, de idade no mundo e grau de adaptabilidade ao ambiente, digamos assim, afloravam… Era possível observar o comportamento de cada uma e cada um de nós, irmãs e irmãos…
Por onde começar…? Vou começar por mim… Eu parecia deslocada, lançada num ambiente ‘hostil’, quando íamos à feira. Muito medrosa, temendo me perder naquele mar de mercadorias e gente circulando em um espaço apertado e labiríntico, eu olhava para o chão, escolhendo onde poderia pisar, enquanto também olhava para os lados, temendo ser atropelada por um passante frequentador, vendedor ou carregador da feira, que surgiam por todos os lados levando junto quem não tivesse ‘jogo de cintura’ para sair do caminho. Além de tudo isso, eu já estava fazendo o principal que era, manter contato visual para não perder minha mãe de vista. Imaginam o quanto esse exercício de alerta permanente me deixava exausta?
Minha irmã era muito segura de si, pelo menos era o que aparentava. Uma espécie de antropóloga (não em Marte) naquela feira. Uma atenta observadora do comportamento humano em sociedade. Identificava as formas de troca, as relações de poder, de parentesco e inventariava, com o olhar, interações e conflitos de classe.
Meu irmão mais velho curtia as cores, as formas, as figuras e precisava ser monitorado mais de perto pelos olhos da nossa mãe para não ficar entretido com o desenho daquele mundo no meio do vai-e-vem. Ele já era um desenhista, um artista plástico no jeito de enxergar à feira.
Meu irmão mais novo amava brinquedos e miniaturas! Perfeitas imitações de caminhões e carros de passeio feitos de lata ou madeira, malabaristas feitos de palitos de madeira, piões girando no chão, eram vendidos na feira e ele os descobria em meio a tantas barracas e mercadorias. Apontava na direção de cada descoberta, para eu ver, e só sossegava quando podia chegar perto e investigar como eram feitos, para tentar fazer igualzinho em casa. Ele podia se dedicar a esse esporte detetivesco, tranquilamente, uma vez que, todos nós, irmãos, pai e mãe, ficávamos de olho nele o tempo todo.
Meu pai era um ator coadjuvante quando o assunto era ir à feira com minha mãe. O termo em inglês define melhor a função dele: supporting actor, ou seja, aquele personagem secundário que dá o apoio fundamental a protagonista, no caso, minha mãe, para que a narrativa se desenvolva.
Meu pai cumpria bem o seu papel nas tarefas básicas como, dirigir e estacionar o nosso fusca, estrategicamente, perto da zona de compras; segurar as sacolas e fazer viagens regulares ao carro para levá-las, quando elas já estavam cheias; escolher as verduras, as frutas, as folhas verdes e os legumes que minha mãe sabia que ele conhecia bem e, o mais importante: dividir a responsabilidade de dar uma olhada nos filhos, sabendo localizá-los se ela perguntasse, porque estávamos por ali, mas espalhados no meio daquele mundo de gente.

NADIA VIRGINIA BARBOSA CARNEIRO é baiana da Cidade Baixa de Salvador, licenciada em Filosofia pela UFBA, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professora universitária há 30 anos, tendo atuado na UFBA, UEFS e desde 2015, na UNEB – Universidade do Estado da Bahia, Campus I Salvador, nas áreas de Filosofia, Metodologia da Pesquisa, Oficina de Linguagem audiovisual e Estética da Comunicação para o curso de graduação em Relações Públicas. Já publiquei mais de uma dúzia de livros de poemas, participei de coletâneas diversas e caminho para o terceiro livro de crônicas.
Universos de interesse: Arte, Cidade, Imagem, Fotografia, Literatura, Poéticas e imaginário urbanos.
4 respostas em “Dona Heide foi à feira e levou a família – Parte I”
Uma delícia de texto. Evocou lembranças por aqui. Parabéns , Nádia!
Obrigada Maribel! Tenho um baú enorme cheio delas! as lembranças. Rsss
Muito bom, Nádia. Legal entender como funcionava as feiras nos tempos idos usando seu ponto de vista.
Também tem três irmãos, hein? É legal analisar cada um deles de acordo com suas características. É, como se diz, uma verdadeira aula de antropologia em forma de crônica.
Mal posso esperar pela segunda parte desta história, afinal feiras nunca foram meu forte mesmo.
Com exceção de uma lá em Sorocaba onde minha irmã morou há treze anos. Tinha um pastel enorme que é uma beleza de degustar. Quinta-feira era uma festa por causa deste excelente alimento que adoro de paixão.
É isso, Nádia. Um grande abraço e até a próxima.
P.S: Estou de teclado novo.
Mario, mais uma vez obrigada pelo olhar inteligente, captando a essência da crônica. É tudo verdade!!
Parabéns pelo teclado!