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Do armazenamento no hard disk

Algum dia, ouvi: 

Não consigo dormir se não tiver um lençol, uma mantinha, uma coberta.

A frase voltou hoje à minha memória. Não faço a mínima ideia de onde ela estava arquivada. Trivial, sem profundidade, que pode ter sido ouvida em uma fila no banco ou no portão da escola enquanto esperava a saída das crianças. Meu interlocutor não gosta de dormir descoberto. Eu não lembro seu nome, a cor dos seus olhos, a textura de sua pele, ou a roupa que usava. Não lembro nem ao menos onde ouvi a frase que carrego no hard disk mental. Frase que não agrega valor aos meus projetos, que não diz quase nada. Mas está lá, fixada em algum lugar da massa cinzenta, engastada entre neurônios, ocupando espaço. 

Queria ter guardado a primeira frase que escutei de minha avó quando a conheci aos doze anos, os detalhes dos conselhos de minha mãe que me levantavam nos momentos de baixo astral. Mas lembro da frase inútil. 

Acordo no meio da madrugada com ela na cabeça, puxo o lençol e acordo sem entender a lógica das memórias.

Quantas informações, dispensáveis, levamos registradas? Quanto peso morto carregamos vida afora? 

A memória transita por linhas tortas. Posso esquecer o que jantei ontem e lembrar do almoço de família nos anos 70. Ela é alinhavada em sentimentos, afetos, emoções. Lembro do tombo quando ganhei a primeira bicicleta e o desgosto ao ver minha mãe com o vidrinho de merthiolate nas mãos. O remédio curava, mas ardia muito. Recordo da alegria que não cabia no peito quando meus filhos nasceram. 

Fico me perguntando, que afeto está envolvido em lembrar da frase sobre dormir coberto por lençois. No meio da madrugada, com frio e preguiça de puxar as cobertas, uma porção recôndita de mim, me traz a lembrança e me leva a puxar o lençol. Será isso? Uma espécie de alarme é acionado, das profundezas da memória, e me faz tomar uma atitude? 

A lembrança me ajudou a não acordar com um resfriado e me levou a escrever essa crônica. Ela, tão desimportante, habita meu inconsciente, ao lado de tantas outras que desconheço. Quantas informações mais vivem em mim e eu nem faço ideia delas? Você já se sentiu assim, repleto de desconhecimentos?

 Talvez precise voltar ao divã. Quem não?

6 respostas em “Do armazenamento no hard disk”

É interessante pensar em como as lembranças surgem. Muitas vezes, achamos que é do nada, mas certamente, não é.
Adorei refletir nisso com a sua crônica, Maribel.
Parabéns pelo texto.
Bjos e até a próxima.

Antes de mais nada, Maribel, é bom te ver de novo. Afinal, já faz quase um mês que não conversamos, heh, heh.

Mas agora voltamos a ativa e é hora de responder essa sua pergunta bem interessante sobre desconhecimentos e lembranças.

No meu caso, as lembranças estão agora a todo instante. Quando leio um livro ou reencontro uma pessoa ou vejo um filme velho, vou me lembrando de passagens da minha vida quase como se fosse uma espécie de hiperfoco.

Depois da síncope cardíaca que quase me matou em 2020, meu cérebro abriu a caixa das memórias afetivas que nem mesmo lembrava mais.

É como se de repente os arquivos antigos fossem liberados pra uso. Estou vendo que minhas memórias estão voltando aos poucos. E com ela o afeto ao invés da raiva.

Muito boa tua crônica mesmo. Abriu minhas ideias com certeza.

É isso, Maribel. Um grande abraço e até a próxima.

Olá, Mario!
Fico feliz em ler seus comentários e saber que meu texto te despertou lembranças, ou como você diz, arquivos novos foram liberados para uso. Adorei a comparação. Um abraço e vamos nos falando 🙂

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