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Diversão a um

Quando eu era menina, nos meus 10 ou 11 anos, costumava ir ao cinema sozinha. Na falta de irmãos ou primos para me acompanhar, ou mesmo de uma amiga que morasse perto, não me inibia em frequentar as matinês na companhia de mim mesma. Essa foi, porém, uma das poucas diversões a qual me permiti ir sem alguém no apoio. No resto, não só na adolescência como na vida adulta, tinha sempre muita vergonha de chegar sozinha a qualquer lugar. Quando não podia fugir da situação, tentava ficar imperceptível. Mas tinha sempre a impressão de que mil olhos me observavam (que pretensão). Nessas ocasiões, cada movimento de meu corpo era, por mim, milimetricamente calculado, tornando-me totalmente artificial em gestos e palavras. 

Quando me casei, esse problema foi parcialmente esquecido, tendo eu a presença de meu marido na maioria do tempo. Anos depois, ao me divorciar e me mudar de cidade, a questão retornou com força total. Embora minhas filhas fossem, mesmo crianças, excelente companhia, havia momentos em que elas não podiam estar comigo. Eu ficava sempre muito chateada por perder eventos que gostava por causa de uma limitação dessas. Foi então que comecei a buscar, lá no fundo do meu ser, aquela menina de 10 anos que ia ver filmes sozinha. Aos poucos fui conseguindo alguns avanços.  

Teatro e cinema são fáceis. Tentei ir à shows, mas não consigo espontaneidade suficiente para dançar e sinto-me muito esquisita, imóvel no meio de uma multidão que pula ao meu redor. Barzinho, só se tiver música ao vivo: sento-me lá pertinho do músico e faço de conta que ele está tocando só para eu ouvir. De costas para o resto das mesas, evito ver (ou imaginar) os olhares questionadores em minha direção. 

Viajar foi um processo lento. Comecei por aceitar os deslocamentos quase compulsórios oferecidos pela empresa em que trabalhava. No início, fiquei bem insegura, mas, como tudo na vida, o hábito tornou normal minhas andanças por aí. Às vezes, dependendo do lugar e do estado de espírito, ainda dá aquele friozinho na barriga. Mas a paixão pela estrada é maior e me ajuda a dar uma rasteira na insegurança. Além disso, olhar para toda essa minha história, me dá a certeza de que sou capaz. 

Muitos desses medos, além de causados pela timidez, são parte da herança que carregamos de nossa condição de mulher, julgada e controlada durante séculos. Mesmo os homens mais tímidos não se sentem tão avaliados quanto nós, ao sentarem-se sozinhos numa mesa de bar.  

Aos poucos vamos vencendo inibições pessoais e preconceitos históricos que trazemos no coração. Cada uma (ou um) com suas armas, passo a passo.

3 respostas em “Diversão a um”

diferente de você, Luciane, na infância estive muito acompanhada, mas cresci uma adolescente meio complicada e com uma mãe depressiva precisei alimentar meu eu faminto por saídas sozinha. e não nego que a sensação de ser observada é muito real, mas a gente vai se acostumando com ela. hoje em dia, infelizmente ou felizmente, tenho dificuldade de sair acompanhada. é mais libertador quando todos são estranhos, dificil explicar. nunca viajei sozinha, apenas no trajeto mesmo, mas nunca fui estrangeira numa terra desconhecida, mal posso esperar e a admiro por me mostrar um pouco de como é nessa lindissima crônica!

Adorei sua crônica, Luciane. Nós, mulheres, somos muita julgadas. Parece que, aos olhos do outro, estarmos sozinhas em algum ambiente isso nos diminui. Que bom que está mudando, e muito. Mudando dentro da gente 🙂

Que bom que estás vencendo estas dificuldades de se divertir e de andar sozinha. Afinal, como tu dissestes, é complicado ser observada todo o tempo por pares de olhos e rostos que não sabem ser compreensíveis com a situação alheia em 98% das vezes (e olha que estou sendo bem generoso).

Se pra uma mulher andar sozinha já é complicado, imagina pra alguém como eu ir a bares, viajar pra lugares barulhentos (e as vezes silenciosos e desconhecidos também), ir a shoppings e ao cinema sozinho com barulhos por todos os lados reverberando nos seus ouvidos (sim, tenho Asperger ou se preferir, autismo de nível 1) e sempre na berlinda pra evitar crises graves como gritar, dar socos na parede ou simplesmente querer ficar sozinho no seu canto pra acabar com a confusão que habita em meu cérebro.

Onde só me sinto bem indo a Biblioteca da minha cidade ou a um sebo ou a uma livraria onde gosto de conviver com os livros que me trazem paz e silêncio.

Além da minha casa, é claro. Do meu quarto que chamo de casa onde prefiro ler livros e ficar ou jogando ou traduzindo coisas no computador.

Em suma, viajo de outras maneiras e fico feliz com minha diversão única.

É isto e até a próxima. Uma boa crônica.

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