Eu temo reconhecer que meus pais eram acumuladores. Organizados, mas acumuladores. Em todas as casas que habitamos, desde a infância, havia um quarto onde coisas eram deixadas, abandonadas, esquecidas para sempre ou até que, por alguma volta que o mundo dava, eram lembradas e recuperadas.
Minha mãe tinha um arquivo mental de fazer inveja. Ela podia entrar naqueles quartos lotados de “reservas técnicas” da família de olhos vendados, encontrar o que procurava.
A coleção mais bizarra de todas era a de sacos plásticos. Minha mãe tinha muito apreço por eles e, se alguém ousasse pensar em jogar fora, ela vinha com uma explicação plausível para cada exemplar de saco plástico metido dentro de um saco que estava metido dentro de outro saco que ficava guardado dentro de mais uns quatro sacos, para garantir.
O estilo acumulador dos meus pais não era visível a olho nu. A nossa casa estava sempre muito bem arrumada. Mesmo com quatro crianças em casa, meus irmãos e eu, tudo tinha de estar no seu devido lugar. A bagunça organizada dos nossos pais, com garrafas de gás, engradados, panelas enormes, enceradeira e peças de veículos cheirando a graxa pelo meio, ficavam restritas ao “quarto dos fundos”, a “dispensa” ou ao “biombo” como era chamado em uma das nossas últimas casas. Sempre fora do perímetro de circulação dos moradores e das visitas. Uma espécie de zona restrita a pessoas autorizadas. Alguns desses espaços, inclusive, eram trancados a chave. Por isso, que meus pais eram acumuladores organizados.
Havia uma ou duas ocasiões no ano, no entanto, em que a “mania” de acumular dos meus pais podia ser vista. Era na temporada de férias, nos feriados e fins de semana prolongados em que a residência oficial se transferia para a nossa casinha numa praia do outro lado da Baía de Todos os Santos, numa curva imprevista do Recôncavo Baiano.
Lembram daqueles concursos do século passado em que a graça era descobrir quantas pessoas podiam caber num Fusca? Minha mãe e meu pai eram campeões em fazer caberem um milhão de coisas no nosso velho Fusca, além deles dois, nós, os quatro filhos, uma prima-irmã e mais um ou dois cachorros de estimação.
Só para terem uma ideia, vou citar algumas coisas que já viajaram conosco num Fusca: um fogão de quatro bocas com forno autolimpante; um boneco “Judas” em tamanho natural para ser queimado na Semana Santa; praticamente, todas as panelas de todos os tamanhos, colheres de madeira, facas de cozinha; instrumentos musicais de nossa banda amadora; coleções de discos, vitrola e caixas de som; camas e colchões; móveis de todos os tamanhos; meus livros e os livros da minha irmã; bicicletas (pelo menos duas para não haver fratricídio); Televisões de diversas polegadas e, no meio do caminho, uma passada no mercado para fazer umas compras. Acho que eles queriam estocar suprimentos para durar meses ou anos! E, quando todos e tudo parecia se ajeitar no carro, durante a travessia de ferry boat para chegar na Ilha, meu pai encontrava um amigo ou conhecido que também ia para o mesmo lugar e, oferecia carona. É, no carro do meu pai sempre cabia mais um. Mas quando os nossos protestos de filhas e filhos que mal podiam se mexer no meio de tanta bagagem parecia fazer sentido, sobretudo a minha cara feia, meu pai dispensava o candidato a carona, mas, encontrava um meio termo, arrumava um espaço para fazer a gentileza de levar a bagagem do conhecido.
Em uma fase posterior, quando mudamos de carro, meu pai resolveu comprar um reboque para atrelar no fundo do veículo, assim tudo poderia ser armazenado lá no reboque. Minha mãe gostou muito da novidade. Daí em diante, ela passou a lotar o reboque até o limite regulamentar e também o interior e a mala do carro.
Anos depois, meu pai teve outra ideia genial: como em Salvador, morávamos numa enseada em frente ao mar, ele resolveu alugar um barco para levar TUDO que minha mãe precisava para nossa casa lá do outro lado da baía. Era só atravessar a rua e carregar o barco. Metade da família seguia viagem com meu pai no barco e, no fim da manhã, chegavam ao destino, depois da Ilha de Itaparica, perto de Salinas das Margaridas e atracavam o barco pertinho da nossa casa, e deixavam a carga na areia. Pronto. Enquanto isso, a outra metade seguia com minha mãe, de carro até lá. Reconheço que meus pais eram ótimos nessa logística de transportes.
E pensar que minha mãe e meu pai faziam tudo isso para estarmos juntos… O caos do amor e do cuidado ia se organizando à medida que os dias de liberdade, desrotina e convivência sempre inventiva e divertida iam passando sem ninguém perceber…
Eu me lembro de quase tudo, como parte de uma herança imaterial inestimável que meus pais deixaram. Quase nada eu quis herdar do legado material. Guardo somente duas panelas de aço inoxidável, pratos, canecas, talheres, imagens de Santo Antônio e mais uns poucos objetos de decoração. Prefiro as coisas que não perecem ou ficam perdidas pelo caminho.

NADIA VIRGINIA BARBOSA CARNEIRO é baiana da Cidade Baixa de Salvador, licenciada em Filosofia pela UFBA, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professora universitária há 30 anos, tendo atuado na UFBA, UEFS e desde 2015, na UNEB – Universidade do Estado da Bahia, Campus I Salvador, nas áreas de Filosofia, Metodologia da Pesquisa, Oficina de Linguagem audiovisual e Estética da Comunicação para o curso de graduação em Relações Públicas. Já publiquei mais de uma dúzia de livros de poemas, participei de coletâneas diversas e caminho para o terceiro livro de crônicas.
Universos de interesse: Arte, Cidade, Imagem, Fotografia, Literatura, Poéticas e imaginário urbanos.
5 respostas em “Coisas, materiais e imateriais, que ficaram pelo caminho”
Delícia de crônica, Nádia! No fundo é isso, são as coisas imateriais que vamos levando de fato. As memórias, os sentimentos. Adorei a capacidade de transporte do fusca rsrs.
Beijos,
Carina
Vamos deixando pedaços de nós no caminho da vida, algo que possamos seguir para voltar ao início da jornada, mas, como aconteceu a João e Maria, os pássaros das horas devoram tudo o que fomos. Já não há como voltar, só a lembrança é o que nos resta. Linda crônica.
Obrigada Giordana,
A melhor parte, a quela que não nos será tirada é sempre imaterial, é sempre memória.
Sabe, Nádia, é difícil de desapegar das coisas quando são sentimentais demais e é aí que leva a acumulação.
Cada objeto traz memórias e tudo vira subterfúgio para mantê-las.
Eu que o diga com relação aos livros. Já tive uma biblioteca muito maior e chegava até mesmo a acumular caixas e caixas de recortes de jornais variados desde editoriais até palavras cruzadas passando pelo caderno de esportes. Foi de 2001 a 2009 e depois de 2014 a 2018, se não me engano.
A coletora levou praticamente tudo. Hoje tenho pouca coisa e a maioria dos livros já doei. Agora essa situação se resolveu graças ao velho e bom PDF que só acumula meu HD.
É que pra seus pais, tudo era considerado memória e nem perceberam que a acumulação as vezes pode te levar ao desespero.
Que bom que tu percebeste isso e que fica com poucas coisas que realmente são importantes.
Afinal, como já tinha dito antes, não levamos nada nesse mundo, certo?
É isso, Nádia. Um grande abraço e até a próxima.
Pois é Mario, viver é difícil e não tem jeito, coisas vão sendo deixadas pelo caminho…
Obrigada pelo seu comentário.