Oh Lord, what kind of idiot would go to work this time of day?
Manhã de domingo de Páscoa e eu estou sentado diante de 24 pinos de cocaína.
Na verdade, o termo técnico é “eppendorf” e o Auto de Exibição e Apreensão diz “suposta cocaína”. “Suposta”, claro, é o termo de praxe. O laudo pericial provisório já detectou, preliminarmente, a “presença da substância COCAÍNA”, tal como consta da lista F1 da Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998, da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde. Esse é um dos casos em que, na audiência de custódia, o juiz certamente converterá o flagrante em prisão preventiva.
Estou trabalhando desde quinta-feira no Plantão Judiciário. Quando entrei no Tribunal de Justiça, me deparei com dois grandes privilégios dos quais sempre me gabei: o recesso forense de fim de ano e a tal “quinta-feira santa”, o feriado das Endoenças. Quase ninguém folga nesse dia, mas eu sim. Não desta vez.
Trabalhar no feriado prolongado da Páscoa não é legal. Na quinta, sexta e no sábado, “só” quatro medidas protetivas e um furto. Até ofício liberatório eu fiz. Mas trabalhar no Domingo é um pouco demais para mim.
Coloquei os fones de ouvido e uma música que um amigo tinha enviado dias atrás. Joshua Lee Turner, Public Life. “Oh Lord, what kind of idiot would go to work this time of day?” Enquanto eu ouvia, tentava pegar algo da letra com meu paupérrimo inglês, e olhava para os “eppendorfs”, e pensava no café da manhã que tem toda Páscoa lá na igreja, e nas pessoas comendo juntas… Depois, iam cear, cantar (provavelmente cantariam “Porque Ele vive”!!). Depois as famílias iam seu reunir, comer, trocar ovos… Tem o aniversário da Taciana mais tarde… Enquanto isso, o cara dos 24 pinos de cocaína ia passar a Páscoa na penitenciária, com certeza.
Por um instante, lembrei do meu professor de Economia usando uma palavra para descrever Pequim quando voltou da viagem institucional feita pela faculdade: muitos contrastes. No instante seguinte, lembrei da minha primeira viagem a São Paulo. Fui fazer uma prova que era perto do Parque da Independência. O trem parou num lugar sujo, abandonado. Lá estava eu numa cidade gigantesca, sem companhia, num lugar perigoso e feio… virei a esquina e vi uma mansão. E outra. E mais outra. Acho que eu nunca tinha visto tantos prédios e casas bonitas e luxuosas. Pouco à frente, o tal Parque da Independência – o lugar de refúgio ao final da prova –, imponente, magnífico! Contrastante.
A música do fone parou de tocar. Silêncio na rua. É Páscoa. A Carol está dormindo aqui ao lado. Fui à sala pegar duas revistas da Coleção Folha “Grandes Pintores”: Caravaggio e Rembrandt. Voltei ao quarto-escritório. Na rua, um carro de anúncios rompeu o silêncio. “Enquanto o som do paredão toca, cê gasta o seu batom de cereja; eu bebo, cê beija, eu bebo, cê beija”.
No quadro de abertura da revista do Rembrandt, a luz repousa sobre o rosto de um Jeremias desolado lamentando a destruição de Jerusalém. Antes do Chiaroscuro (claro-escuro) de Rembrandt — e antes ainda do de Caravaggio —, a arte e a vida já tinham seus contrastes aos montes. O quarto evangelista (já que é Páscoa) abusa deles: dia e noite, água e vinho, fé e incredulidade, luz e trevas, vida e morte. Dostoiévski, certa vez, reuniu, na leitura do capítulo 11 do tal quarto evangelho de João (a passagem da ressurreição de Lázaro), um homicida megalomaníaco e uma prostituta humilde.
“Enquanto o som do paredão toca, cê gasta o seu batom de cereja; eu bebo, cê beija, eu bebo, cê beija”.
O cara dos 24 pinos de cocaína teve o flagrante convertido em preventiva.
O maldito carro distanciou-se.
Expedi o mandado de prisão, enviei para a cadeia, juntei os e-mails. Quase fim de expediente.
Novamente fez-se silêncio. Como entre aquela sexta-feira e aquele domingo.
A Carol ainda dorme, em paz, como se nenhum homem tivesse batido em nenhuma mulher lá no interior de São Paulo. Como se nenhum jovem de 20 e poucos anos tivesse sido pego com 24 pinos de cocaína e fosse passar a Páscoa preso. Enquanto pessoas comem chocolate numa manhã de Páscoa, eu expeço mandados de prisão.
Oh Lord, what kind of idiot would go to work this time of day?
…
P.s.: Bem baixinho, em uma igreja aqui perto, alguém começou a cantar:
“Porque Ele vive, posso crer no amanhã. Porque Ele vive, temor não há. Mas eu bem sei, eu sei, que a minha vida está nas mãos do meu Jesus que vivo está”.

Paulista, formado em Economia, trabalha como escrevente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mora atualmente em Uberlândia/MG com Carolina, sua esposa. Começou a escrever tardiamente, por volta de 2018. Desde então, tem escrito mais a cada ano. Publicou contos, crônicas e poesias em antologias diversas.
6 respostas em “Chiaroscuro pascal”
Fala irmão!
Super barroca sua crônica! O estilo é contemporâneo mas você traz à tona os clássicos. Mais um contraste! E tem movimento na cena criada, uma espacialidade, tridimensionalidade – o carro de som passando, a esposa que dorme, ir na sala buscar a revista. Isso traz riqueza à escrita pois torna a experiência do leitor sensorial, audio-visual! Conseguimos estar lá com você, cúmplices de um dissabor do escritor-servidor que agoniza um plantão.
A mensagem de esperança – pra quem tem olhos pra ver – é aquilo que transcende os constrastes éticos e estéticos. A Igreja segue cantando. Ele vive. Uma lembrança bonita do eterno. Captar o poético desse mundo é desafiador e você o fez!
Bela crônica, meu amigo!
Parabéns pela crônica, Misael.
No meu ofício de investigador de polícia, também já passei muitos domingos de páscoa, natais e anos novos em plantões policiais.
Como disse Kant, “o homem é o único animal que precisa trabalhar”. E nós, servidores públicos que laboramos em atividades consideradas essenciais, somos os únicos animais que precisam trabalhar enquanto os outros se divertem.
Misael, sua escrita é admirável.
És um escritor de excelência.
Parabéns!
A Justiça não dorme! Parabéns pela crônica!
Pois é, Misael. Como diria meu amigo lá do Velho Oeste, existem dois tipos de pessoas neste mundo: os que passam a Páscoa comendo ovos de chocolate e os que trabalham no domingo de Páscoa.
É bom lembrar que nesse caso o mal nunca dorme. E lutar pela justiça tem um preço.
O preço da ocorrência policial acontecer onde menos espera. Mas que bom que encontrou sua paz em Rembrandt. A minha é escrever tudo o que dá na minha telha, mas com o preço de tomar críticas por todos os lados.
Como diz o velho ditado, cada um de nós tem uma cruz pra carregar e o homem olhando por todos nós.
É isso. Um grande abraço e até a próxima.