Meu filho tem me pedido autorização para crescer. Estranho? Não, o inconsciente se manifesta de formas muito curiosas e com as crianças não é diferente, mas é mais encantador. Ele teve contato com animes e alguns filmes, não através de mim ou com minha autorização, que o atrapalharam. E ele, um menino sensível que costuma internalizar seus sentimentos, não conseguiu lidar com as cenas que assistiu. A gente acha muitas vezes que a classificação indicativa serve mais como mero acessório obrigatório e não a respeita e considera seu valor, mas eu posso garantir que ela tem o objetivo de proteger nossas crianças. A definição que encontrei na Wikipédia é ótima: Classificação Indicativa é uma informação sobre a faixa etária para a qual obras audiovisuais não se recomendam, baseada em critérios de nível de maturidade, tendo como propósito principal ser ferramenta de auxílio aos pais na escolha do conteúdo midiático que seus filhos devem ter acesso. Ferramenta de auxílio, excelente. Muitas vezes o rato atropela o gato ou o coiote cai do penhasco e aí a classificação diz 10 anos, pois contém violência. De novo, assim como muitas coisas na vida, devemos ter bom senso e equilíbrio.
Meu filho sempre se preocupou muito comigo. Ter uma mãe com transtornos mentais o fez navegar junto comigo por um distúrbio psiquiátrico complexo. Acreditem, eu não gostaria que ele tivesse passado por isso, mas eu não escolhi sentir essas coisas e muito menos tenho controle de como lidar com meus passeios pelos extremos e bordas. Por muitos anos, esse menino que hoje já alcança quase meus ombros, queria me dar colo e proporcionar o amparo que eu nunca tive, isso desde quando mal alcançava minha cintura. E, sinto dizer para as mães que acham lindo uma criança as acalmando num momento de tristeza e caos, mas crianças não tem que fazer isso. Nós somos os adultos e nós devemos ampará-las. Não o contrário. Essa inversão de papéis pode colocá-las em um sofrimento muito grande e as atrapalhar psiquicamente.
Meu filho e eu nós encontramos em outro momento agora. Ele está lidando com sentimentos e questionamentos que ele não pode se ocupar antes e eu, felizmente, cheguei num ponto do meu tratamento que pude dar uma virada muito importante na minha vida. Meus passeios pelos extremos e bordas se tornaram raros e as caminhadas onduladas da normalidade fazem parte da minha vida agora. Ele pergunta: o que eu vou fazer quando crescer? eu vou ser rico ou pobre? onde eu vou morar? qual faculdade vou fazer? A psicóloga dele sugeriu que eu também me colocasse em cena e pudesse imaginar junto com ele o que estaríamos fazendo daqui a 10, 20, 30 anos. Quase como numa entrevista de emprego: onde você se enxerga a curto, médio e longo prazo?
Meu filho e eu, após o temporal que destruiu nossa cidade, tivemos conversas muito reveladoras e poéticas. Assim como também nos foi possível perceber melhor nosso ambiente. Descobrimos que uma família de passarinhos está fazendo um ninho em frente ao prédio da nossa janela. E eles visitam nosso pátio em busca de gravetos. Todos os dias. O que passamos aqui na cidade parecia cena de filme de terror ou ficção científica. Nossa dependência da tecnologia é tão grande que emburrecemos. O mesmo ser humano que descobriu, fez e faz tantas coisas bonitas se destrói pouco a pouco. Nós somos coniventes com a destruição de nosso próprio ambiente. Cientistas já compartilharam quais são nossas opções e que não temos muito tempo. A mudança é urgente. Quando meu filho faz o que eu chamei de Brincadeira do Amanhã e tentamos pensar onde estaremos daqui a 20 anos, eu não preciso voltar às bordas ou aos extremos para ficar desorganizada ou em sofrimento. Sinto que estou mentindo para ele.

Cineasta e escritora, é co-fundadora da Oito e Meio Filmes. Atuou em diversos curta-metragens com trajetórias em festivais e premiações. Seu trabalho como roteirista do documentário “Sinal de Alerta: Lory F”, foi premiado como Melhor Montagem e Melhor Filme na edição de 2022 do Festival de Cinema de Gramado. No mesmo ano esteve presente no Marché Du Film com seu projeto “Deusa Bipolar”. Em 2023 finalizou Carta ao Pai, que circula por festivais e ganhou prêmios na Europa e no Brasil. Atualmente é graduanda de Letras na UFRGS e, na sua atuação na escrita, tem contos publicados pela revista Subtextos e faz parte da equipe de poetas do portal Fazia Poesia, além de escrever crônicas no Escritor Brasileiro. Em 2024, publica “Hoje eu Sangrei Palavras”, seu primeiro livro de contos.
10 respostas em “Brincadeira do amanhã”
A relação mãe-filho trás em si um mistério universal que transcende a compreensão humana. Muito envolvente o seu relato e muito sábio as observações a respeito do bom senso, realmente é assim, a despeito de tantos limites e deficiências, somos dependentes uns dos outros, sobretudo mães e filhos.
Oi, tudo bem?
Muito obrigada pela leitura e comentário.
Sim, é uma relação muito intensa, delicada e cheia de nuances.
Fico feliz que gostou.
Até a próxima!
Texto sensacional, trata de forma tão delicada e sensível um tema extremamente difícil. Adorei a brincadeira do amanhã, acho que vou praticá-la – comigo mesma, estou precisada!
Oii.
Obrigada pela leitura e comentário.
É uma brincadeira sem limites de idades 🙂
Beijo e até a próxima
A tarefa de educar é delicada. No seu texto senti intensidade na relação e no meu entender, isso é maravilhoso. Não há mentira, talvez omissão, o que é compreensível. Amei a brincadeira do amanhã.
Oi, Edna.
Obrigada pela sua leitura e comentário.
Educar é muito delicado mesmo e as coisas por aqui são bem intensas. Mas recheadas de amor e respeito. Até a próxima.
Que coisa gostosa essa ideia da Brincadeira do Amanhã! Adorei essa atividade com seu filho
Oi, Regiane.
Sim, uma brincadeira muito gostosa mesmo 🙂
Bom, pra começo de conversa, é difícil entender como passas com relação a seu filho até porque não tenho filhos, nem cheguei perto de um namoro (acho que sou generoso aqui, nem flerte faço!!) e nem penso em construir uma família porque me sinto tão diferente dos outros.
No entanto, posso entender teu drama de enfrentar os medos e as bordas, como diz, da vida porque tudo é tênue e qualquer pequena crise explode tudo.
Acho que essas crianças de hoje são bem espertas e compreendem a situação que passamos. O problema é que botam muita carga de responsabilidade na própria criança e que os pais de hoje (não estou generalizando, certo?) não querem saber de ensinar valores tipo certo ou errado e deixam a deus dará, criando monstros futuros.
O pior é que temos tão pouco tempo pra corrigir isso até as forças da natureza agirem novamente com toda a justiça. É o castigo da humanidade merecido por machucar demais a Mãe Natureza.
Uma boa crônica. Até a próxima.
Oi, Mario, tudo bem?
Desculpa a demora em responder, mas estava com alguns probleminhas pessoais.
Obrigada pela sua leitura e comentário.
Criar crianças é muito difícil mesmo, uma baita responsabilidade e vejo muitos pais perdidos e desconexos e com grandes dificuldades em ensinar valores básicos.