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Batidas do tempo

Sempre estive presa a um Cartier que mais parecia ter sobrevivido a uma guerra. Talvez representasse a derrota da minha mãe contra um câncer de mama. O relógio ficou parado durante uns 30 anos. Nem sei como se deteriorou tanto, mesmo guardado numa gaveta de madeira,  e na da memória, sem mais perceber a passagem das horas.

Mas, tornou-se uma espécie de elo de ligação.

Foi comprado pela minha progenitora em sua única ida à Europa, pouco antes de sua viagem sem volta.Vindo de quem era, não se trataria de marca qualquer. Cheguei a pensar em jogá-lo pela lixeira.
Embrulhei-o até num saco de supermercado.

E aí, numa conversa no trabalho em que o tema tratou de peças antigas, resolvi interná-lo para ganhar vida, num relojoeiro no Shopping Downtown, onde trabalho, na distante Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

O milagre levou seis meses e cinco dias. Eu ia visitá-lo praticamente toda semana.

E o marcador de horas em formato oval voltou a pulsar.
O que não teve mais jeito de retornar foi a mulher que me colocou no mundo e saiu de cena aos 52 anos de muita vida que possuía pela frente. Um câncer a interceptou. Um tumor no seio familiar e no peito de uma mulher rancorosa, já em estágio bem avançado, que não lhe deu outra alternativa, senão extirpar uma mama por inteiro.

Imaginem para uma das criaturas mais vaidosas desse país o que não foi ser mutilada? Uma pessoa que não suava nem se amassava, mesmo usando roupas de linho. 

Fazer quimioterapia e radioterapia, logo em seguida à cirurgia de extração. E carregar uma marca cor de carne queimada no mesmo peito que não teve leite para me amamentar. Fui aleitada por uma ama a quem devo a saúde de leoa.

Tem duas coisas de que tenho horror. Rato e um cancro. Doença que se espalha na surdina, mostra-se traiçoeira e não deu chance para D. Eunice. Durou cinco anos para depois levá-la, após um sofrimento desumano.

Engraçado que nunca considerei minha progenitora uma mulher forte e corajosa. Inclusive, ao meu ver, chorava muito. E o seu choro me incomodava. Não suporto ver alguém em lágrimas, pois quero que pare, como num ímpeto de criança mimada. Não sei lidar com sentimentos de dor. A cicatriz quase imperceptível que o câncer materno me deixou.

Mas, agora, ao me lembrar de tudo pelo que aquela mulher passou, sem nunca fazer dramas nem se lamuriar nos meus ombros de adolescente rebelde, tenho a certeza de que, com todo o seu choro, era muito mais forte do que eu e chorava para aguentar firme a sua doença.

E eu, como fuga, escolhi o riso, que é a minha grande arma, além da língua ferina, para seguir com o show da vida.

O relógio marca…

2 respostas em “Batidas do tempo”

E você acredita que ele está querendo parar novamente? Acho que tem algum significado. Sem volta.
De qualquer forma, do processo saiu uma crônica e reconheci a minha mãe.
Abraços e até a próxima!

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