A vida em sociedade apresenta muitos bônus, porém, como tudo em nessa existência temos que lidar com o ônus também. A convivência em um condomínio é um dos exemplos que acarreta muitas vantagens, principalmente quando se refere ao lazer e à segurança. No entanto, às vezes precisamos lidar com situações um tanto desagradáveis e inusitadas.
Ao falar nisso, me recordo de certa feita quando morei em um edifício, não ficava em um bairro nobre, também não era na periferia. Digamos que em um bairro de classe média. Nem por isso me evitou de ter problemas, aliás, não os tinha ainda maiores porque me limitava aos metros quadrados que me diziam respeito, por mais que alguns vizinhos não se incomodem em incomodar.
No andar logo abaixo havia um casal de jovens, não sei se eram amigos ou amigados, isso é o que menos importa, o que realmente importava era o barulho que eles faziam, todo final de semana era uma algazarra diferente. Zoada era o que dava. Som alto, gargalhadas, pancadas na parede, nem televisão eu conseguia assistir.
Mas se esses jovens com sua farra quase juvenil já era incomodo, eu não imaginava que poderia ficar pior. Mas sempre pode piorar, assim é a vida. Quando se trata de algo negativo, as possibilidades são infinitas e vem à galope.
No andar de cima morava um casal de idosos, pacatos, tranquilos, como os convinha, nem era perceptível sua presença no prédio. O senhorzinho andava com dificuldade, quase não saía para a área livre. O prédio não dispunha de elevador, o que dificultava ainda mais sua locomoção. Estava debilitado por alguma doença, não me lembro ao certo, apenas ouvi em uma conversa alheia no corredor.
Algum tempo depois a senhorinha ficou viúva, mudou-se para a casa da filha e em poucos dias o apartamento foi alugado. Vi a nova vizinha uma vez de relance pelo corredor, mal troquei uma palavra, era uma mulher jovem, bonita, porém, calada. Não era dada às palavras, mas não economizava nos gritos e gemidos.
Pelo menos duas vezes por dia recebia uma visita misteriosa e lá começava a baixaria. Logo se tornou o assunto do prédio. Um dia ouvi uma vizinha cochichando enquanto subia as escadas.
— Uma pouca vergonha!
— Aqui é um ambiente de família. — retrucou a outra.
Mas a nova vizinha pouco importava com o falatório das outras. Todos os dias, quase que religiosamente, recebia a visita do seu amante misterioso. Eu, em meu apartamento era obrigado a acompanhar a farra alheia. Era o meu telesexo particular gratuito.
Encontros ardentes vem e vão, logo a moça ficou grávida. Então, a farra diária foi substituída por enjoos matinais. Eu cá embaixo era obrigado a fazer meu desjejum ao som da êmese gravídica. Talvez não tão inconveniente, mas tão incômodos quanto os sons que eram produzidos anteriormente.
Cada dia as visitas do parceiro misterioso fora diminuindo, ao mesmo tempo que foi deixando de ser tão misterioso assim. Ouvi as vizinhas cochicharem nos corredores que era um homem casado, e que agora estava ferrado com essa gestação inapropriada. Tratava-se de alguma autoridade, nunca vi a cara, mas as vizinhas que dedicavam horas a cuidar da vida alheia, diziam ter até foto do homem ao entrar no apartamento.
Eu, em meu canto me reservava, quando ouvia qualquer coisa a respeito, me calava. Ainda mais por saber que o homem era autoridade, quero mais é fugir de problema, e quanto menos souber melhor. Mas, as paredes finas do andar de cima me obrigavam, ainda que sem querer, acompanhar a novela que ali se desenrolava. E tão envolvido eu estava na trama que já aguardava ansioso as cenas dos próximos capítulos.
Algumas semanas sem a visita do amante, ouvi a vizinha falar com uma amiga.
— Hoje ele me paga, pensa que eu sou qualquer uma? Que vai me engravidar e sumir. Ele está muito enganado.
Logo em seguida ouvi quando ela ligou para o amante e fez mil ameaças, que iria dar vexame na frente da delegacia se fosse preciso. Foi assim que eu soube que o tal era delegado de polícia. Ouvi até quando ela, descontrolada, ameaçou contar para a esposa, desligando o telefone em seguida. Não passou meia hora, lá estava ele cheio de desculpas pedindo mil perdões. Dizendo que a ausência era por causa dos plantões, mas que ele jamais a deixaria, ainda mais em um momento como aquele. Beijou a barriga, interpretou o papel de pai dedicado.
Dobrou a moça, e em segundos pude ouvir os gemidos que há semanas estavam silenciados.
Na semana seguinte, parou em frente ao prédio um caminhão de mudança. Ouvi quando ela disse para a amiga que ele havia alugado outro apartamento em um condomínio vizinho ao que ele morava com a esposa, assim ficaria mais fácil dar a atenção que ela precisava e que a gestação requeria. Não faço ideia do que a amiga pode ter achado dessa situação toda, mas também não era de minha conta.
No dia seguinte após a mudança, fiquei intrigado. Como será que iria desenrolar aquela história? Será que a esposa iria descobrir todo o caso, a traição, o filho bastardo? Logo eu que não deixo um filme inacabado, senti agonia de não saber o desfecho desse enredo entrelaçado.
Por fim, me resta aguardar para ver quem serão os novos vizinhos. Se a vida deles vai ser tão intrigante quanto a da vizinha do andar de cima, ou se será apenas mais uma vida pacata, sem graça como tantas outras, inclusive a minha.

Nasceu em Itarantim, Bahia. Reside em Vitória da Conquista. É bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, licenciada em Letras/Inglês e Filosofia. Especialista em Direito do Trabalho, Violência contra a Mulher e Docência no Ensino Superior. É poetisa e escritora. Possui o título de Doutora Honoris Causa em Literatura outorgado pela Academia de Letras do Brasil-SP, onde ocupa a cadeira 38. É colunista da Revista Escribas. Autora de “O Reflexo atual da subjugação feminina” entre outros livros de poesias e contos, participa em dezenas de coletâneas nacionais e internacionais. Ama correr, costurar, pintar, fazer pão, ver bons filmes e ler nas horas vagas. Orgulha-se em ser mãe e avó.
2 respostas em “As loucuras do andar de cima”
É verdade, em um condomínio residencial, nem precisa se esforçar tanto para ter contato com vários universos infinitos. Muito bem, parabéns.
Morar em apartamento é como jogar RPG em tempo real. Jogam-se os dados, digo, apostam nos novos vizinhos e vê o que acontece.
Uma coisa é certa. É uma história diferente uma atrás da outra e a maioria delas a gente nunca saberá o desfecho, a menos que seja uma pessoa que quer apenas ficar na sua vida calma e sem sobressaltos.
Conviver em sociedade não é fácil.
Até a próxima.