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crônica narrativa

A capelinha

Diz-se que lá para as bandas de… bom, melhor não dizer o nome para não prejudicar a imagem decente da cidade, mas o que se pode dizer que é diminuta, agradabilíssima, tem uma igreja numa praça, seus concidadãos reúnem-se ali eventualmente. Bebe-se muito nas escadarias, conjuram-se pecados e perdões aos fundos da capelinha.

Dia desses, é o que contam, o padre ou pastor berrava as indecências da cidade: Deus! [em maiúscula mais pelo berro que pela autoridade sagrada] deus há de lhes condenar, irmãos! Deus só lhes pede que enveredem pelo sendeiro reto, irmão!

A mocinha com o irmão por lá de atrás da edificação abafava: me condena, irmão, meu deus! Envereda em mim esse sendeiro reto! Meu deus! O que não se pode falar (aquilo lá estava para lá do obsceno e não podia ser devidamente relatado), deve-se calar, e o irmão calava-se quase sem ar já.

O clérigo não se continha e já se metia ao próprio Antônio Vieira: quem se mete na estrada a evangelizar, irmãos, não deve regressar jamais! Segui-vos em frente, um caminho sem retorno! Não olhai para trás e vai!

O apneico ouvindo isso reverberar pelas paredes duras da capelinha ia fazer de olhar para trás, já preocupado –— exibicionista que não era —, mas a mocinha Malva repetia entre dentes: Não olhai para trás e vai!, irmão! Evangeliza-me, irmão! Ai!. Ele tremia respondendo: esse caminho está a ponto de ser sem retorno, minha irmã!

Semeai!, irmãos! Semeai as sementes de deus! Fazei chover as sementes que mesmo em face do maior deserto, deus fará de brotar a palavra!

E essa partícula seminal, semear sementes, foi por demais sugestiva para os dois conjuradores lá de atrás da edificação da capelinha. Gritaram Amém! Senhor! E o que brotou de gente lá não teve igual. Fez-se luz e toda a cidade esteve clarividente do milagre ocorrido. De palavra o que se espalhou dessa verdade não se pode nem narrar, do tanto o mais o quanto: um bocado de boca em boca.

Diz-se também que foi fecundo para a cidade: ganhou proeminência, começaram-se a promover orações coletivas; vinha-se gente de fora de todos os cantos a genufletirem-se ali e a orar, orar, orar, com muito gosto as palavras seminais inundavam as bocas de toda a gente e a cidade se tornou muito promissora, muito diversas, um antro de prazeres e felicidades, bem à imagem e semelhança dos ideais helenísticos que fizeram brotar o próprio cristianismo. Um grande polo de investigação sobre os prazeres humanos, a preocupação-mor dos filósofos cristãos, regado a experiências das mais diversas e quando mais se aprendeu e se soube sobre isso que nos é tão natural: o prazer; o desejo não do proibido (isso é afeto ao satana), mas o desejo daquilo que já nos é um prazer consagrado e, reforçados, queremos mais e mais, como a fé do fiel que só se enche, que só se preenche, que sempre se torna cada vez mais dura e certa e visível: deus invade-o com todo o amor e deseja-se só e mais e sempre aquilo que já se tem: uma fé. O desejo sagrado se realiza e segue sendo desejado e é aí que reside o milagre. O desejo satânico é interdito e, realizado, frustra-nos. De modo de que nunca mais pararem as suas práticas religiosas, a cidade tornou-se também sagrada, pois ali residia o milagre.

Há quem duvide de milagres e o argumente pelo fato de eu ocultar o santo: o nome da cidade em que isso se passou. Mas isso só o é porque não nos interessam rótulos, mas apenas os comportamentos: incriminam-se as palavras; as ações são feitas impunemente, tão naturais, autênticas e ingênuas que são. A quem duvida, saibam que todo causo é verdade; mais verdade que as verdades que se contam por aí; os causos falam com a amor; as verdades com a razão; e o coração nunca mente. Mas para se ter intuição de contar um causo, é preciso muito conhecimento de vida; intuição é um saber enorme não sistematizado na hora que se expressa, mas os artistas intuitivos sempre o são apenas depois de um longo percurso de ciclos de sensibilidade e racionalização.

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