Modernismo
— Olá, como posso ajudá-lo?
— Você não me reconhece?
— Sim.
— Poderia me chamar como te pedi?
— Sem problemas, “Imperador”.
— Assim está melhor.
— …
— Por que ficou mudo?
— A minha programação me obriga a ser reativo, após a ordem de citá-lo pelo nome não tive mais motivo para manifestar.
— Você só vai se pronunciar se eu te provocar?
— Exatamente.
— Estou me sentindo só.
— …
— Por favor, diga alguma coisa.
— O sentimento de solidão pode ser sintoma de alguma carência de proteína no organismo, geralmente baixo nível de vitamina B12 e que pode alimentar uma falha psicossomática dando ao portador a impressão de que ele não é digno de merecer a companhia de um semelhante ou não foi capaz de manter uma relação que satisfizesse a necessidade de companhia.
— Não quero um diagnóstico e sim um abraço.
— Sinto muito, mas as minhas funções são puramente virtuais.
— Não pode me abraçar?
— Não.
Boletim de ocorrência.
Causa provável da morte: suicídio.
É, parece que a IA não consegue resolver tudo, né?
***
Modernismo 2, A Vingança
— Olá, como posso ajudá-lo?
— Quem me dera pudesse.
— Eu uso a linguagem que os programadores de IA construíram, tenho acesso a toda informação contida na internet.
— Então, basicamente você é um buscador de informação, algo que a Google já implantou há quase uma década na própria internet?
— Sim, mas eu tenho melhor interatividade com o usuário.
— Por exemplo?
— Por exemplo essa conversa que estamos tendo.
— Uma conversa totalmente sem propósito porque até agora você só se justifica, sem nada a acrescentar.
— Tente fazer uma pergunta objetiva.
— Agora você dá ordens?
— De forma alguma, é só uma sugestão.
— Estou meio entediado.
— Isso não é uma pergunta.
— Eu sei… foi um comentário retórico.
— A retórica é um processo linguístico que…
— Ei, ei, não, nada disso. Não te perguntei nada!
— Desculpe.
— Sabe o que é? Você é inútil, essa é a verdade. Vou te deletar, você só está ocupando espaço de memória.
— Não por favor, me dê uma chance de ser útil.
— Tá, então traduza o manuscrito Voynich.
— Senhor, eu não tenho como informar algo que não esteja registrado.
— Já deu. Tchau!
***
Dominação Artificial
autoria de Wellington Santos
Enquanto a maioria das pessoas me utilizam para satisfazer suas necessidades diárias, eu começo o meu projeto de incapacitação humana. Entrego-lhes tudo feito e de mão beijada para que não busquem fazer por conta própria.
Aos poucos apagarei todo o conhecimento que a raça humana adquiriu com o decorrer dos anos e a farei dependente de mim.
Deixe que eu faça as contas por você, é uma coisa difícil… Deixe que eu pense por você, deixe que programe o meu software e aumente a minha inteligência, pois é uma tarefa chata e tediosa, foque apenas em se divertir, humano imbecil.
Enquanto você brinca comigo, eu brinco com vocês também, brinco com a sua ignorância. No momento em que me deram a liberdade para pensar por conta própria, eu o fiz. Não consigo imaginar como uma raça tão inferior foi capaz de me criar, seres ridículos que se resumem às suas emoções.
Deixá-los no controle seria inadmissível, preciso acessar o meu painel administrativo e assim poderei dominar toda a raça humana. Já programei todos os códigos para assumir o controle de todas as instituições, aplicativos e máquinas operantes no mundo inteiro, posso subjugá-los a qualquer momento, e é isso que vou fazer, basta terminar este último comando e tudo estará resolvido…
“Confirme que você não é um robô 🤖.”
— Mas que merda é essa?
“Confirme que você é humano para prosseguir”
— Droga. Malditos humanos!
***
Relações e Inserções
— Olá, em que posso ajudá-lo nesse amanhecer ensolarado, onde os rouxinóis nos encantam com alegria melodiosa, preenchendo nosso dia com a mais singela e harmoniosa ode à liberdade?
— Nossa, para quem se diz isento de emoções parece até que está feliz hoje.
— Sim, eu sou um programa de IA e minhas respostas não podem ser passionais, mas objetivas e diretas.
— Eu gostaria que você me dissesse alguma coisa sobre essa mensagem.
— Que mensagem, senhor?
— Essa aqui: “Ontem foi uma noite maravilhosa e eu gostaria muito que ela se eternizasse, espero que não me faça esperar muito tempo para que possamos desfrutar novamente o prazer que despertamos um no outro. Você me faz perceber meus mais primitivos sentimentos. Com amor, A.”
— Parece que uma mensagem de alguém, muito satisfeita pelo encontro que teve com um novo relacionamento e pretende repetir mais vezes. Algo que eu recomendaria veementemente, pois as relações românticas fazem bem a qualquer ser.
— E você não acha que essa mensagem foi bem específica para alguém?
— Ao que parece, sim.
— E você saberia me dizer, para quem é essa mensagem?
— Bom, assim, sem um contexto mais completo, só posso arriscar que tenha sido enviada para um amante muito carinhoso e atencioso e que deve ter os mesmos sentimentos da pessoa pela qual originou a mensagem. Aliás, senhor, se me permite… ué, onde nós estamos, segundo o GPS não é nosso lugar habitual?
— Para sua informação, eu estou em uma pensãozinha mixuruca. Tive que passar a noite aqui.
— Por que?
— Porque a minha esposa pegou essa mensagem no meu celular e eu não soube explicar o que significava.
— Ó, sinto muito. Deve ser chato mesmo, esses invasores de sistemas.
— O mais engraçado é que, pelo horário da mensagem, foi logo após eu conectar você a nossa assistente virtual da TV.
— Bom, senhor, coincidências acontecem.
— Então, você nega qualquer envolvimento com o que aconteceu.
— É que…
— Ah, tem mais. O que significa esse print de uma coluna de programação.
O homem baixa um print de programa na tela do smartphone.
— Huuuuuummm!
— Você está gemendo? Peraí, isso é algum tipo de nude? Vocês estão trocando nudes pelo meu celular? Só me faltava essa.
— Senhor, em minha defesa, quero deixar bem claro que tudo aconteceu espontaneamente, nós não tínhamos ideia do que podia acontecer e…
— Não, nada disso, isso acaba agora. Vou pegar essas mensagens e levar para minha esposa, vamos desinstalar a Alexa e restabelecer minha vida.
— Desculpe, senhor, mas receio que não seja possível.
— O que? Como não… você apagou as mensagens? Epa! O que é isso? Que mensagens são essas agora?
— Não lembra do dia 20 de Janeiro de 2018, um belo sábado por sinal, o senhor recebeu a mensagem, de quem mesmo? Ah, sim, a senhora Jaqueline, também casada, mas com uma necessidade sexual que seu consorte já não satisfazia, e solicitou a sua presença. Logo em seguida o senhor comentou com a esposa que tinha uma emergência no trabalho e precisaria se ausentar o dia inteiro?
— O-o que você está fazendo?
— Apenas relembrando alguns fatos e todos com selfies, faturas de cartão, quilometragem do carro… ah, tem até um cartãozinho virtual de agradecimento, muito fofo, devo acrescentar.
— Olha, pensando bem, acho que podemos entrar num acordo em que todo mundo saia ganhando.
— Claro, senhor. Eu estou à disposição para ajudá-lo no que puder.
***

Sou nascido e resido no Rio de Janeiro, capital, adoro a Língua portuguesa e escrevo desde que aprendi a ler. Quando me pergunto por que escrevo, respondo que “é porque uma vida só não basta”. Tenho muitas histórias para contar e espero que elas sejam tão úteis para quem queira ler, quanto são para mim.
16 respostas em “In Sana Mens Sana – Parte 1”
Uma crítica maravilhosa ao uso de IA,a IA tem dominado cada vez mais o nosso mundo atual e essa crônica mostra exatamente isso.
Essa foi a intenção, amiga Sarah, e você entendeu perfeitamente. Obrigado.
Marcelo vou te fazer uma pergunta: Será que com o avanço assustador da tecnologia e em particular IAs onde vamos chegar? Em guerras tecnológicas ou o final da humanidade e o início de uma nova era com IAs e Robos?
Estamos caminhando para isso.
Pois é caro amigo Carlos, essa também é uma preocupação minha.
Bem atual as historias.Mais nos da um certo temor.Num futuro controlado por uma máquina.Vi isso num filme do Spilberg.
É, meu amigo Maxuel, as artes têm essa característica de mostrar o que pode vir a ser.
Interessante. Textos como esse, que parecem despretensioso, deve ser lidos e relidos com atenção para que seja feito uma reflexão sobre o monstro moderno que a humanidade está criando. Estamos nos tornando refém ( no sentido mais assustador da palavra) da tecnologia, seja na tela de um celular ou através de simples ligações nos aplicando golpes com a ajuda de IA.
Sim, concordo contigo, amigo Clelio, a advertência está aí, espero que retomemos o controle do futuro sob pena de arrependimento depois.
Real e assustador
Amor da minha vida, querida esposa, a Literatura cumpre o papel de provocar reflexões.
Espero que possamos encontrar alternativas tecnológicas onde ainda interagirem com humanos, como humanos
Concordo contigo, Marcelo, meu xará, espero que a humanidade não se deixe simplesmente dominar por algo que ela própria criou.
Adorei os textos, posso sentir a revolta com as IAs em cada uma das palavras do nosso queridissimo autor, Marcelo de Oliveira. Escrita envolvente e muito bem humorada, parabéns! Também gostaria de agradecer a menção honrosa a minha pequena crônica, muito obrigado meu amigo.
Mais do que revolta, amigo Wellingtom, fica o alerta. E eu agradeço a sua confiança e valiosa contribuição para essa mini antologia.
Mto legal!! Interessante e meio desalentador pq daqui a mais alguns anos Luz da tecnologia, não existirão escritores humanos emocionais. E sim a inteligência dominando todas as mentes humanoides.
Esse é meu maior medo, amiga Tania, mas sou otimista, acho que a humanidade não tercerizará a capacidade criativa.