Categorias
crônica

Ó pedaço de mim!

Vi, recentemente, na TV, uma fila, no mínimo, insólita. Não era a tão conhecida fila do INSS, cheia de tristezas acumuladas, nem uma cotidiana fila de emprego qualquer em que se empilham medos e esperanças.

Se tratava, quem sabe, de um eco daquela fatídica fila de escravizados aportando em algum litoral brasileiro, que tanto povoa o nosso imaginário historiográfico, ou de “neoescravizados” recrutados em algum rincão desse país para serem espremidos até a última gota.

Essa associação parece radical, mas o que estava em jogo ali, naquela fila, era justamente a venda de corpos humanos, pelo menos de suas porções. Sim, era uma fila para “negociar” o corpo humano, sem, no entanto, destruí-lo por completo (devemos dizer “amém” por essa misericórdia ao “deus” mercado?).

Se antigamente roubavam cadáveres, múmias, ou se compram e vendem humanos inteiros ou em partes (um fígado, um baço, um coração custam o “olho” da cara no mercado clandestino, dizem) agora aprenderam a ganhar dinheiro com os nossos bocados, mas conservando o corpo íntegro, indolor, de maneira que se conserve sempre rentável.

Tal facilidade, aliada à precariedade financeira do povo, certamente ajudou a criar a tal fila quilométrica num shopping de São Paulo. Uma empresa estava pagando cerca de 700,00 reais (em bitcoins) para escanear a íris de cada indivíduo.

Acho que nunca vi a normalização do mercado de humanos tão estabelecido, no Brasil, desde então, quanto nesta oportunidade, e olha que já tiveram outras, não veiculadas na mídia.

É de sabença geral que vivemos numa sociedade Big Data. Se antes, vendíamos tão somente a nossa força de trabalho, como mercadorias produtoras de valor, hoje em dia nos tornamos a própria matéria-prima dessa engrenagem. Na era louca da informação, fomos transformados em dados, precificados, organizados em servidores, tabulados para sermos funcionais em alguma operação de aprendizado das máquinas. 

O mais irônico de tudo, é que já geramos tais dados em escala multitudinária e os entregamos “de bandeja” às empresas através de nossos cliques, curtidas, compartilhamentos, etc. Mesmo assim, vemos que nada impede que estratégias mais “agressivas” como essa, noticiada em São Paulo, se tornem cada vez mais comuns. 

Aparentemente, a proposta de vender uma fotografia da íris nem causou estranheza ou desconfiança nos partícipes, encegueirados que estavam em pegar o dinheiro. Não conseguiram ou não quiseram entender que tal ação poderia ser comparada a trocar uma quantidade de sangue, a digital, um pedaço do cabelo, ou qualquer outra porção de si mesmo por um punhado de dinheiro. E, sem julgamentos, sabemos que com a pobreza e a privação vem toda a sorte de sujeições e nos tornamos presa fácil das mais diversas armadilhas.

Confesso que me preocupa, justamente por isso, as implicações éticas dessa mercearia orgânica que se espalha em nossas periferias. Vamos abrir, assim, sem qualquer reflexão, para que os nossos corpos se tornem dados a serem armazenados e utilizados, sem garantia de respeito e integridade, por bilionários arrivistas, por outros países, quem sabe?

E pensar que, na mitologia Grega, Íris era uma divindade mensageira entre-mundos. Assim, não poucas vezes, serviu como ponte entre os deuses e os mortais. Bela e fugaz, a sua representação é o arco-íris que une o Céu à Terra. Aparentemente, as Big Techs conseguiram o pote de ouro que fica no final desse arco-íris e farão de tudo para capturá-lo. 

Já, biologicamente, a Íris é aquela estrutura responsável por controlar a quantidade de iluminação que entra no sistema ocular. Mais uma ironia narrativa, pois, quando absolutamente tudo virar dado — até o nosso pensamento! — e os humanos brincarem de deus na Terra, só nos restará as trevas. 

Não é que eu seja catastrofista, mas, como dizia Goya, “o sono da razão produz monstros” e é natural que se adormeça de olhos bem fechados.      

3 respostas em “Ó pedaço de mim!”

Na Europa tá comum essas lojas que tu escaneia teu olho e faz souvenir deles. Eu fiquei chocada como o pessoal estava disposto a entregar um dado tão sensível, a íris é tão única quanto impressão digital, pra sair com uma foto ou colarzinho.
Aqui parece que a gente tá tão empobrecido que a estratégia da empresa foi de pagar mesmo.
Eu sei que a gente entrega milhares de dados todos os dias para empresas, mas aqueles kits de dna e essa de vender a íris tem um potencial catastrófico na mão de eugenistas. Não acho seguro não.

E de pedaço em pedaço, nosso corpo deixa de ser nosso e nossa mente deixa de ser nossa mente, Raphael.

Tornamos apenas mercadorias baratas para deleite e lucro de poucos. Cara, isso me faz lembrar os espartanos que deixavam as crianças imperfeitas nas montanhas sendo comida pros abutres.

E como aquelas crianças, fomos deixados de “comida” pros tubarões bípedes com cérebro altamente desenvolvido e polegar opositor, além de usar ternos caros e ter uma fala bem articulada e manhosa.

No fim, até a nossa janela do mundo chamada Íris vai se embora nas mãos de um bilionário inescrupuloso. A impressão que me dá é que a gente parece aqueles humanos do jogo Primal Rage onde só servem pra ser devorados pelos lutadores dinossauros.

Esta é a vide vida marvada, meu amigo.

É isso, Raphael. Um grande abraço e até a próxima.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *