Há algum tempo vi uma reportagem sobre os conflitos na Síria. Uma das famílias entrevistadas contou que tinha uma mala sempre pronta, com objetos essenciais e documentos, caso fosse necessário abandonar sua casa às pressas. Aquilo me impactou sob vários aspectos. Enquanto lidava com a angústia empática, questionei meus botões: o que é essencial para mim? O que eu colocaria numa mala dessas? Além de umas trocas de roupas, documentos pessoais, celular, o que mais?
A pergunta sempre me volta a cada guerra ou catástrofe noticiada. E a resposta foi variando um pouco ao longo do tempo. Vendo as imagens das enchentes no Rio Grande do Sul, voltei a me perguntar: se tivesse trinta segundos para pegar algo em casa e sair correndo, o que eu levaria?
Acho que nesse momento da minha vida eu me preocuparia com coisas que fazem parte da minha história, lembranças de tempos que não voltam. Então, levaria um dos quadros pintados por meu falecido pai, dos vários que decoram a minha sala (Provavelmente o do casario com fachadas iluminadas pelo sol); levaria também uma das inúmeras toalhinhas de crochê feitas por minha mãe e a correntinha com pingente de letra M, que era dela também. Talvez aquele potinho colorido em forma de flor, herança de minha avó materna. Daria tempo de pegar uma xícara do jogo de porcelana inglesa que era de minha outra avó? Não posso esquecer os livros autografados do Mia Couto e da Maria Valéria Rezende. Recordações de viagens tenho muitas, inviável levar todas. Pego a canequinha de Sevilha. Tempo esgotado!
Uma das maravilhas da era da tecnologia é ter menos papeis guardados em casa. Documentos, trabalhos, textos, fotos, tudo está na nuvem. Acessíveis de qualquer lugar com internet. Mas e as fotos antigas? Tenho álbuns e álbuns de minha infância e juventude, da infância de minhas filhas… Impossível salvar tudo. Acho que ainda consigo pegar, na passagem, o porta-retratos onde minhas meninas, tão pequena em seus uniformes da escolinha, sorriem para a câmera.
Abro parênteses: Preciso dizer que é muito mais fácil para mim encarar com desapego situações de crise. Ter uma vida estável, casa própria, rendimento fixo, rede de apoio e tudo mais, torna possível dar-me ao luxo de considerar os bens materiais como coisas que podem ser adquiridas novamente no futuro, apesar do prejuízo e mesmo que não de imediato. Não é a mesma coisa para boa parte das famílias desalojadas, para as quais a perda é bem mais dolorida. Fecho parênteses.
Fico pensando que, na prática, em pânico, talvez não conseguisse levar nada. Mas é melhor dar um jeito de digitalizar aquelas velhas fotografias guardadas no armário.
E você, o que levaria em sua mala de fuga?

Luciane Madrid Cesar é uma paulistana de coração mineiro. Cronista, contista, poeta e escritora de livros infantis, trabalha conceitos de auto-conhecimento, cidadania, relações humanas e meio ambiente em suas obras. Lançou, recentemente, o livro de crônicas “São outros 50”, fruto do blog do mesmo nome, que aborda com leveza e bom humor os aprendizados colhidos na maturidade. É membro da APESUL – Associação dos Poetas e Escritores do Sul de Minas e acadêmica da AFESMIL – Academia Feminina Sul Mineira de Letras e embaixadora do Instituto Lixo Zero Brasil. Sua família muito amada é composta por duas filhas, dois genros e o Theo, seu filho de quatro patas. Mora em Varginha, nunca viu o ET mas tem certeza que ele esteve por lá.
3 respostas em “Mala de fuga”
Ótima pergunta Luciane… Eu venho aprendendo o que é o desapego, na prática, faz uns anos… primeiro meu pai se foi… depois, minha mãe… e há um ano, meu irmão mais novo… Não sou apegada as coisas e nem posso ser apegada as pessoas que amo… Então, eu levaria um ou dois cadernos com escritos, meu HD externo e um restinho de esperança que ainda sobrou em mim. Obrigada!
Também me faço essa pergunta, Luciane. O que salvar em situação tão extrema, além da própria vida e a vida de quem amamos?
Melhor deixar uma malinha pronta e uma nuvem carregada de fotos. Na hora H a dúvida talvez me paralise.
Parabéns pelo texto 🙂
Bem, Luciane, eu levaria na minha mala de fuga um celular, bastante roupa, livros se puder, toda “porcaria” que puder comer e dividir com os “colegas” do ginásio e principalmente revistas de palavras cruzadas pra passar o tempo o mais rápido que puder. Além de lembranças da família, especialmente do meu irmão falecido em 2023.
E principalmente cadernos e canetas. São além de material de pesquisa, um material importante e crucial pra construção de novas histórias que seriam certamente emocionantes e impactantes.
E também refletivas sobre nosso relativo normal, ou como minha irmã costuma dizer, um novo normal com clima diferente e devastador provocada pela ganância e arrogância do ser humano.
Uma grande e desafiadora crônica como sempre. E eu adoro particularmente as crônicas deste tipo que tu faz, deixando sempre um desafio em forma de pergunta no final.
Faz a cabeça da gente trabalhar.
Espero que essa chuva passe logo e que tudo volte ao menos a ter um pouco de paz aqui no Rio Grande do Sul. Ainda assim, será longa e penosa nossa construção.
Aqui em Pelotas não sabemos o tamanho da nossa perda ainda, mas os bairros da parte mais baixa terão perdas totais, além de grande parte do Laranjal (os balneários Valverde e Santo Antônio, e mais a Colônia de Pescadores Z-3). Eu estou mais tranquilo com meu pessoal porque moro em um dos lugares mais altos, o Balneário dos Prazeres, ou se preferir, Barro Duro.
É isso. Um grande abraço e até a próxima.