Há um pequeno mundo do qual eu nasci tendo acesso desde criança, este é o circuito de alguns povoados de uma cidadezinha no interior do estado da Bahia. Pois é de onde vem minhas raízes.
Em uma das minhas idas, sendo mais específica: a ida do verão de 2017; conheci uma criança vizinha de uma tia, Sophia.
Baixinha e de ossos marcados na pele, Sophia me acompanhava em tudo que eu fazia durante meus poucos dias hospedada na casa ao lado da dela. Se eu ia visitar alguém, explorar, conversar, ela ia junto. Ao se levantar, ir me esperar acordar era a atividade que se seguia após escovar os dentes. Eu explicava que não acordava cedo por natureza como ela, mas ela não se importava em esperar, ali, sentada, assistindo a bagunça de um mundo tão distante dela, no jornal que pulsava na sala. E então, tomávamos café da manhã juntas, saíamos, voltavámos, almoçávamos. Saíamos, colhíamos e comíamos siriguelas até o sol se pôr, daí nos separávamos para o banho no fim da tarde. Durante o início da noite pegávamos nossas lanternas e íamos povoado a dentro até a casa de alguém, a varanda de alguém, conversar mais um pouco. Poucas famílias, uma trilha em cada caminho para chegar a qualquer lugar, mas muito, muito assunto.
Sophia me lembrava a atriz Rose Williams pois cá em casa eu estava assistindo uma série onde ela interpreta uma princesa, e Sophia tinha traços parecidos com os dela. Eu nunca cheguei a dizer isso para Sophia pois tive receio de ela interpretar como uma competição, já que ela — tão cheia dos pontos de vistas de outros, dizia que tentava incessantemente ter a raiz do cabelo ‘lisinha como a minha’. Eu, embora na época alisasse minhas pontas para ficarem lisas como a raiz, sabia que não era um caminho saudável.
Na despedida de 2017, chorei na van que me levava embora daquele povoado. Eu sabia que veria todas aquelas pessoas nos anos seguintes como já havia visto nos anos anteriores, mas temia que quando voltasse Sophia não estivesse mais lá pois ela era neta morando com avó, temporária e instavelmente. Chorei de uma saudade que não passava de um realismo duro: a vida sendo móvel e ondulante como sempre foi. Chorei por um desejo de eternidade que há humanamente cravado por tudo que é confortável.
Quando retornei, dois verões após, foi a última vez que a vi. Ela sentiu uma estranheza quando me viu, um certo medo de se aproximar, mas bastou perceber que eu ainda era eu para que ela pudesse dizer “Vitória está diferente, mais melhor, mais bonita” Sei que meninas, quando crianças, tendem admirar adolescentes pois já fui uma menina, e além disso, quando fui uma menina, desejei ter uma irmã mais nova. Sophia foi além de ser minha amiga, Sophia me mostrou o que seria ter essa irmã por alguns dias em dois verões. Quando voltei a cidadezinha da qual pertence o povoado, no verão de 2019, não chorei na van. Já tinha dezesseis e não mais quatorze, um coração com a pele um pouco mais firme e de batidas mais certeiras. Na feira, comprei uma boneca para Sophia, uma imitação de Barbie que ali vendia e enviei por alguém.
Há alguns anos, me disseram que ela havia se mudado, que estava namorando com um adulto bem mais velho, como é, infelizmente, o destino de meninas como ela. Eu queria poder comprar uma Barbie de verdade e enviar para Sophia, lembrá-la de tempos simples como foram aqueles dias. No entanto, estou certa de que Sophia se lembra vagamente de mim. E eu não tenho seu endereço ou conheço alguém que possa enviar. A Barbie também não teria mais utilidade.
É curioso como quando crescemos saudamos tempos de inocência e quando crianças brincamos com o que seremos o resto da vida, essa é a experiência feminina. Nós agora, eu e Sophia, somos as bonecas mexendo nossas próprias pernas, narrando nossas próprias palavras em um mundo que pulsa dessa vez não só na sala.

escrevo de dentro, por fora e entre as limiares de pedras (da selva); “Entre estas árvores que inventei e que não são árvores, estou eu.” – R.B
viva há pouco mais de sete mil dias grunhindo de são paulo, sp, brasil.
8 respostas em “Por onde anda Sophia?”
A infância é a mais real e sincera vida do ser humano, tanto que até Nosso Senhor adverte, “se não fores como estes pequeninos não entrareis no Reino dos Céus” belíssima e sensível crônica, parabéns.
Não devíamos nunca ter que utilizar “perdida” ao lado de “infância”, não é? Devíamos nunca perdê-la de vista e sermos ainda inocentes como as crianças que fomos um dia, é sempre um caminho interno, nunca externo. Obrigada!
Que bela crônica! Eu me vi na sua história. Aqui na Bahia também vivi histórias assim. Eu e meus irmãos indo passar o verão no interior do Recôncavo Baiano (crianças da capital Salvador), conhecendo outras crianças (primas, primos, vizinhos deles e delas) que viviam uma realidade tão diferente da nossa. Tudo era assim, temporário, passava e ao mesmo tempo ficava gravado em nós.
Parabéns e um abraço.
acredito que na infância os dias são mais longos ou processamos os acontecimentos de um jeito que se assemelhe ao efeito de câmera lenta, já que memórias assim sempre estão mais próximas do que as de ontem, por exemplo. Bahia é um lugar lindo e vivo, é incrível como ela marca tanta gente. Obrigada e até mais!
Lendo sua crônica voltei no tempo e lembre que uma Sophia também cruzou meu caminho. Uma amiga-irmã que a vida me ofereceu. Tive a sorte não perdê-la de vista, apesar de morar a um oceano longe de mim. Parabéns pela crônica, Vitoria.
é de uma beleza perfeita quando a distância física não interfere nos sentimentos, Maribel. obrigada!
Amizade verdadeira essa que tu tens com Sophia. Aquela que fica guardada de pantufas em seu coração.
O tempo passa, os caminhos mudam, mas o tempo não muda o coração da gente.
Vou lhe contar uma história, Vitória (tenho uma prima com este nome!!), e como verá é verdadeira.
Tempos atrás, encontrei minha velha turma de faculdade alguns pessoalmente e outros pelo Messenger e fiquei muito contente por terem se lembrado de mim depois de tanto tempo. E voltaram no momento que mais precisei deles quando perdi abruptamente meu irmão mais novo dias depois de eu completar 47 anos. Me tornaram a dor mais suportável.
Amizade e lealdade que jamais esquecerei. E sua crônica me fez resgatar esse sentimento.
Um grande abraço e até a próxima.
em momentos que precisamos de outros, é sempre curioso como esses outros surgem de diversas maneiras que não imaginaríamos. esse tipo de companhia é inesquecível mesmo. sinto muito pela perca do seu irmão, sei que o luto nunca passa, embora nos acostumemos com a falta, de certas maneiras. sempre fico feliz com a existência de outras Vitórias por aí, mande um abraço para a prima! Até mais.