Categorias
crônica

Pirita

Por mais que a modernidade esteja presente, creio que ninguém discorda que um dos grandes prazeres da vida, usurpado pela geração internet, é a interatividade com o mundo real.

Sempre haverá os herdeiros seculares, que viveram estupefatos as novas tendências ditarem as regras de mais uma geração, resistirem a abandonar velhos hábitos.

Por exemplo, se prostrar ao lado das raras bancas de jornais da cidade para ler as primeiras páginas de manchetes mais populares e suas chamadas sensacionalistas.

Grandes amizades surgiram assim. De repente completos estranhos ficavam lado a lado, durante os dias da semana, à espera da condução para levá-los ao trabalho, liam as mesmas notícias e trocavam opiniões.

— É um absurdo o que esse governo faz com o povo. Olha só, mais um imposto pra gente pagar.

— Mas esse é para a Saúde, olha aqui.

— E você vai acreditar nisso? Quer apostar quanto? Daqui a seis meses vai continuar tudo na mesma porcaria. Não vamos ter um hospital que preste, falta remédio, falta ambulância, falta médico, falta tudo.

— Sei não, vamos dar um crédito, quem sabe dessa vez a coisa anda?

— Eu queria ter a sua fé, mas tá difícil. Ih! Lá vem o meu, tchau, até amanhã.

— Até, bom trabalho.

Era assim mesmo, muitos batiam papos triviais sem nunca saberem seus nomes, onde moram ou as condições civis. Ainda tem os que sentem falta de um ou outro fulano.

— Você tem visto um rapaz que tava sempre aqui conosco?

— Quem?

— Aquele que tinha pinta de ‘bon vivant’, queria mudar de vida.

— Ah! Agora lembrei, será que aconteceu alguma coisa?

— Espero que não, ele era meio fora da caixinha, mas gente boa.

— Vai ver conseguiu o que tanto queria e mudou de vida.

É claro que os mais assíduos, não se furtavam de compartilhar intimidades e os laços fortaleciam naturalmente.

Idas e vindas eram normais, também não havia tempo para elucubrações. Porém, como tudo na vida, velhos hábitos têm seus prós e contras.

— Não acredito! Armengard, ainda com essa velha mania de ler jornais sem pagar? Rapaz, de cá um abraço.

Atordoado pela intimidade sobressaltada, o velho viúvo se mantém na defensiva.

— Desculpe, mas eu não o conheço.

Surpreso pela repelida, o homem mantém o sorriso generoso nos lábios enquanto sustenta os braços abertos e receptivos.

— Como não me conhece? Vai me dizer que não se lembra de mim.

— Não, meu amigo, tenho absoluta certeza que jamais tive qualquer interação com o senhor.

— Que senhor, o quê. Olha aqui, olha bem para mim, não vai me dizer que esqueceu nossa amizade de tantos anos nessa mesma banca de jornal.

— Por favor, diga logo a que veio, pois tenho muito a fazer.

— Sou eu, velho Armei, o Altamiro. 

— “Armei”? Meu Deus, só você me chamava assim e eu detestava. Aliás, ainda detesto.

— Então, lembrou agora?

— Espera aí, você não é o Altamiro, só pode ser brincadeira, tá parecendo mais um filho bastardo dele.

— Wow! Agora ganhei o dia.

— Mas, que merda é essa na sua cara? Tá toda esticada.

— Fiz harmonização facial, olha só.

O homem mostra a cabeça por todos os ângulos. A pele enrugada do pescoço deixa tudo ainda mais estranho.

— Meu Deus, parece que a sua cara vai rasgar. E que calça apertadinha é essa? E esse cabelo?

— Calça Leg, destaca minhas pernas e fiz permanente no cabelo. Ficou bom?

— Essas pernas finas de frangote? Sinceramente, não sei como reagir a isso.

— Fala sério, fiquei uns trinta anos mais jovem.

— E ainda tem esse brinco, pulseira, sobrancelha delineada… não definitivamente você não é o Altamiro que eu conheci.

— Repaginei. E tem mais, olha aqui.

O homem puxa uma caixinha do bolso parecendo remédio.

— O que é isso, remédio de pressão?

— Não, meu caro, é Tadalafita.

— Diabéisso, homem?

— É o antigo Viagra.

— Você tem problemas de circulação?

— Meu Deus, você continua o mesmo ingênuo de sempre, não acredito. — Altamiro solta uma gargalhada no ar. — Eu tô na moda, meu caro, e pronto para qualquer situação. Tá entendendo?

— Não, não tô entendendo nada.

— Os brotinhos, meu amigo. Tô pronto para qualquer eventualidade e, vou te contar, o que tem de brotinho querendo fazer o papaizinho aqui feliz não tá no gibi.

— Você chama essas meninas de “brotinho” e eu que sou o atrasado?

— Tá certo, tá certo. Mas, diz aí como vai a vida? Casou quantas vezes? Tá com uma família grande?

— Ah, eu só casei uma vez na vida e já foi o suficiente. Tenho três filhos e duas netas, inclusive estou arrumando a casa porque um dos meus filhos está pra chegar, ele vai ficar alguns dias comigo.

— E a patroa?

— Faleceu há alguns anos.

— Ah, sinto muito, meus pêsames. Mas, você nunca mais…

— O quê? Nunca mais o quê?

— Deu uma namorada, assim sem compromisso, sabe o que tô dizendo.

— Não meu caro, como eu disse, tive uma namorada só e já foi suficiente para toda vida, agora é só curtir a família, minhas netas e tá muito bom.

— Ah, que nada, a vida ainda tem muito a oferecer pra essa carcaça aqui. Quero aproveitar tudo que puder.

— Bom pra você, agora se me dá licença…

— Tá com pressa homem, tem filho pequeno pra dar de comer em casa?

— Eu te falei, tô cheio de coisas…

— Vamos sentar ali, colocar o papo em dia. — Altamiro aponta um bar.

— Eu tô feliz em saber que você tá bem, mas eu realmente…

— Não aceito um não, vamos, eu pago a cerveja.

— Fala a verdade, o que você tá fazendo por aqui? Se bem me lembro, se mudou há muitos anos, disse que ia subir na vida e tudo mais.

Altamiro ajeita Armengard de costas para a rua e se senta de frente para a porta do bar, estrategicamente com a vista privilegiada.

— Pois é, rapaz, como eu te disse, fiz de tudo um pouco, até o dia em que arrumei uma ricaça, que me bancava com tudo. Levei uma vida de príncipe…

— Agora virou princesa? — Armengard riu debochado.

— Deixa de presepada. Bom, eu não sou bobo nem nada, comecei a juntar o pé de meia, sabia que a mulher não ia durar pra sempre. Arrumei uns negócios bons, consegui juntar uns investimentos e dei um chute na coroa.

— Clássico.

— Mas, aí começou meu calvário. Eu tenho certeza de que foi praga da ricaça. Só arrumei mulher-problema. Resumo da ópera, hoje eu tô pagando mais pensão do que boleto bancário.

— Cada um colhe o que planta.

— Mas, a fortuna favorece os escolhidos.

— De onde tirou isso?

— Tá certo, foi jeito de falar. — Altamiro bate no peito e faz sinal da Cruz — Enfim, o que eu quero dizer é que tô vigiando um brotinho aí que caiu nas minhas graças.

— Difícil saber quem caiu nas graças de quem.

— Ela tá no papo, rapaz. Tô falando, e eu vim aqui para surpreendê-la na saída do trabalho. Foi quando te vi e fui falar contigo.

— E quantos anos tem esse brotinho? Se me permite perguntar.

— Vinte e um aninhos completos, e eu estou desconfiado que ainda tem “selo de fábrica”.

— Como assim?

— Ela é “zero quilômetro”, entendeu. Cheia de pudor, não aceita ir pro abate, estou tendo um trabalho danado para convencê-la a me deixar ser seu primeiro homem.

— Peraí, quer que eu acredite que você tá saindo com uma menina de vinte e um anos e virgem?

O rosto de Altamiro resplandeceu de tanto orgulho.

— Já parou pra pensar que isso é quase pedofilia. Quando a menina nasceu você já tava com mais de 40.

— Não seja chato, Armei…

— Não me chame assim.

— Olha, lá vem ela, se comporte.

— Quem? Aquela ali?

Uma pessoa alta, magra, cabelos esvoaçantes, bolsa a tiracolo e extremamente maquiada se aproxima dos homens. A pessoa sorri discretamente para Altamiro, logo em seguida lança um olhar intimidador para Armengard, como quem diz “não ouse me afrontar”.

— Meu amigo, Armie… — Altamiro apresenta sua companheira.

— Armengard!

— Essa aqui é minha flor, Florisbela.

A moça estende os dedos para cumprimentar Armengard.

— Encantada.

— Ela não é um doce, Armie.

Armengard fecha o rosto e puxa o amigo de lado.

— Altamiro, ainda que mal lhe pergunte, você não achou nada estranho na sua amiga, não?

— Só o paraíso, Armie… só o paraíso.

— Cara, tu não tá vendo que ela é ele. Tá maluco?

— Com licença, Chuchu. O que esse seu amigo tá falando aí?

Armengard já estava indignado por causa do apelido, resolveu chutar o balde.

— Não me venha com essa de Chuchu! Eu sei muito bem quem você é, senhor Epaminondas Duarte.

Epaminondas, ou Florisbela, nem sei, dei um gritinho de pasmo, Altamiro arregala os olhos e levanta os braços, desesperado.

— O quê? Não, não pode ser…

— Pois eu lhe digo, conheço esse aí desde que nasceu.

Epaminondas, vulgo Florisbela se recobra e começa a gritar tresloucadamente.

— Seu guarda, seu guardinha, por favor, estou sofrendo preconceito de gênero.

— O quê? Que raios é isso? Você tá me acusando de quê?

Enquanto Armengard e Floris (ou Epa, ah! sei lá) discutem, alguém acode Altamiro desmaiado no chão.

A confusão está armada, Armengard e a outra pessoa não binária no centro das atenções, socorristas atendem o Altamiro, enquanto a PATAMO recolhe Armengar e o não-binário. A multidão se divide entre apoio e protestos. Gritos de fascista e macho tóxico são ouvidos. Na delegacia, Armengard e Florisbela (dessa vez ela exigiu o tratamento politicamente correto) continuam se digladiando em frente ao delegado.

— Chega! Vamos respeitar a autoridade aqui. E a autoridade sou eu!

Um tapa forte na mesa põe ordem na casa.

— Então, a senhora…

— Senhorix.

— O, a, senhorix, vai registrar queixa contra o seu Armengard, ou não?

— Mas eu…

— Aconselho ao senhor a guardar silêncio, tudo que disser pode e será usado contra a sua pessoa.

Florisbela se pronuncia.

— Não, deixa pra lá, afinal o seu Armengard sempre foi bom pra mim e me conheceu desde pequeninhix.

8 respostas em “Pirita”

Cara, Armengard e delegacia parecem duas forças irresistíveis destinadas a ficar se encontrando sempre.

E tudo isso pra evitar que o amigo tivesse uma desilusão daquelas ao descobrir que a menina que parava o trânsito na verdade é um menino.

O cara tenta fazer o bem e se quebra nesse mundo tão malicioso. E o pior é que o preconceito foi usado só pra ferrar nosso querido Armengard.

Apesar da Internet e do celular, ainda existem pessoas a moda antiga nesse mundo do tipo que ainda lê jornais na banca. Eu sou um deles, um antigo adaptável as circunstâncias tecnológicas do momento.

Torço pro bom velhinho não ir a delegacia de novo por algo que fez pra ajudar ou proteger alguém ou só por estar no lugar errado e na hora errada.

É isso, Cândido, um grande abraço e até a próxima.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *