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Imunana-Laranjal

Nasci no Rio de Janeiro, mais precisamente no antigo bairro imperial de São Cristóvão. Isso sempre foi motivo de orgulho para mim. Tal qual um selo de autenticidade, sou uma legítima carioca. No entanto, ter o título e morar no Rio são coisas distintas. Sem dinheiro, mamãe e meus tios, com filhos pequenos, foram parar em Laranjal, um bairro de São Gonçalo, região metropolitana do Rio.

Recentemente meu antigo bairro virou notícia em todos os jornais. A gigante estação de tratamento de água Imunana-Laranjal precisou paralisar sua operação por conta da contaminação da água que seria captada para tratamento. O contaminante é um composto químico que pode ser perigoso para as pessoas, especialmente as gestantes, e fica alojado na vida aquática por muito tempo.

Paralisar as operações significou deixar por volta de dois milhões de pessoas sem receber água tratada em casa. Reservatórios de edifícios costumam ter uma quantidade de água armazenada suficiente para conter um pequeno incêndio e para atender as famílias por dois dias e meio. Estão acompanhando?

Dia 05 de abril de 2024 foi o segundo dia sem fornecimento de água. Sem caminhões pipa para todos, apenas serviços essenciais foram atendidos. Eu me esforcei para manter o cor de rosa das minhas lentes, o “vai dar certo” com a certeza de que realmente vai dar. Ontem não rolou.

Laranjal era um bairro pobre nos anos de 1980. A água chegava de forma irregular e éramos obrigados ou a fazer um gato na rede da companhia, ou a viver da gentileza dos vizinhos que nos cediam água. Convivi com a escassez hídrica durante alguns bons anos, quando finalmente mudamos para uma casa com cisterna. Eram sinais de melhoria de vida.

Quando pequena, havia um balneário improvisado nas redondezas chamado Cano Furado da Cedae, que consistia numa tubulação de grande diâmetro com um vazamento. Muita gente caminhava ou ia de bicicleta para tomar banho nos dias mais quentes. Depois da cisterna, outro sinal do nosso progresso financeiro estava no luxo de usar uma piscina de plástico, outra sensação do verão fervilhante, e não visitar mais o balneário. A propósito, a piscina nem era nossa.

Aquele era o meu normal até, aproximadamente, 30 anos atrás, quando deixei Laranjal para fazer faculdade e trabalhar. Quando lembro daqueles dias, sou tomada por uma inquietação: como podíamos viver ao lado da estação de tratamento de água e sermos tão mal servidos? Você tem uma pista dessa resposta para compartilhar comigo? Eu tenho uma, mas creio que não seja a única.

Experimentei nos últimos dias estar do outro lado da moeda: vivo em um bairro classe média, numa das cidades com a melhor qualidade de vida do país, vizinha a São Gonçalo. Minha suspeita é de que todo serviço é fornecido com prioridade nessa cidade porque pagamos caro por ele, seja água tratada, energia, coleta de lixo ou esgoto. Quando algum recurso falta, vemos o movimento “farinha pouca, meu pirão primeiro” surgir como um Leviatã pelo lado do cliente; pelo lado do fornecedor, o desejo da maior rentabilidade no menor tempo possível é a lei.

A corrida para compra das garrafas de água mineral nos mercados e o leilão de preços dos caminhões pipa d’água ligou as sirenes e fez ressoar a frase do Krenak na minha mente: Quando o último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da terra, só então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro.”

Doeu fundo imaginar que um desastre ambiental sem tamanho tenha ocorrido apenas por falta de manutenção de algum oleoduto. Conforme comunicado da Cedae, 160 mil litros de água foram drenados do Rio Guapiaçu contendo a substância e, por um bom tempo, vamos beber um resíduo “tolerável” desse composto químico, segundo alguma classificação de qualidade.

Laranjal se tornou resiliente à falta d’água, apesar de sediar uma das maiores estações de tratamento do recurso. Uma grande amiga que nunca deixou o bairro me informou que, mesmo intranquila com a situação, não experimentava nosso desespero, pois tem sua própria fonte: um poço artesiano. O material que desaguou no Rio Guapiaçu era tolueno, muito usado no refino de petróleo. Não consigo aceitar que o petróleo seja mais importante que a água. Pode-se alegar muitos usos vantajosos para ele, ao que eu respondo: eu não bebo petróleo.

Posso ser carioca de nascimento, mas sou gonçalense de Laranjal com muito orgulho da minha origem. Foi em Laranjal que aprendi a respeitar os recursos naturais e a entender as palavras de Krenak. Sem lentes coloridas, espero que os responsáveis pelo vazamento sejam punidos de forma justa. Não apenas por mim, não apenas pelos dois milhões de pessoas afetadas, mas pelo ataque ao meio ambiente que nenhum dinheiro paga. Afinal, não bebemos dinheiro.

13 respostas em “Imunana-Laranjal”

Oi, Elaine, gostei muito do texto. Essa lógica privatista é implacável. O lucro é sempre da empresa e o ônus sempre do Estado. E como resultado dessa balança, padece a população sem acesso aos serviços mais básicos. Revoltante. Abs, Carina

Texto maravilhoso. Agradeço por refletir e trazer junto gente tão importante quanto o nosso Imortal Krenak.
Concordo plenamente que nós não bebemos dinheiro. Infelizmente, muitas empresas bebem, comem, fumam, cheiram, respiram dinheiro e assim o padrão de atuação se resume a: assumir os negócios, restringir investimentos, cortar pessoas do quadro, sucatear a infraestrutura e depois dizer que “o mercado” comprometeu a sua atuação. Vemos os casos recentes das empresas de energia que apresentaram falhas monumentais e demoraram muito para resolver (ou nem resolveram ainda) em São Paulo, No Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro. Não são ocorrências aleatórias, há um pensamento por trás disso. E dá para ver a mesma racionalidade em diversos casos recentes de empresas que quebraram no varejo e em outros setores da economia.
É preciso ter, em todas as empresas, gente que pensa em gente. O lucro é essencial, não é isso que está em discussão, mas não tem como esquecer que há gente no mundo.
Para não levar um puxão de orelha do Krenak, complemento: há gente no mundo, há peixe, há árvore, há montanha, há vida.

O que não entendo é a indignação do depois. Não que seja nossa culpa. Julgo ser o maior pecado da humanidade, essa imposição ditatorial pelo “reclamar depois”. Antes, passa incólume. Se houvesse uma convocação para expor a contrariedade em aceitar a instalação de indústrias potencialmente prejudiciais ao meio ambiente em área de mananciais ou de captação de recursos naturais para comunidades, a adesão seria pequena. Somos naturalmente predispostos a reclamar ferozmente depois da ocorrência. Precisamos barrar esses acintes antes. Água é tão vital quanto o ar que respiramos. É necessário brigar para reverter esse quadro e não permitir que o acesso ao básico seja tolhido da população.
As louváveis palavras do ambientalista citado, são uma “adaptação” da citação dos índios americanos, se não me engano, que já pregavam um imenso respeito a Grande Mãe Natureza.

Visto que o dano já está posto, o que nos resta além de exigir que as coisas mudem? Culpar as vítimas não é uma opção válida, ao meu ver.
Há órgãos de meio ambiente e leis para garantir que as indústrias não sejam instaladas em áreas de manancial, próximas a leitos de rio e etc. Se isso ocorre, é necessário encontrar quem favoreceu a ocorrência disso.
Sobre a citação do Krenak, a sabedoria ancestral indígena consiste na soma dos conhecimentos e em passá-los adiante.

Realmente amiga.E inadmissível esse fato.
Os culpados têm que ser punidos mas infelizmente não acredito que sejam.
É revoltante a falta de conscientização e a maldade que estão fazendo com o nosso PLANETA! Você me representa. Bjs, Patricia Jogaib

Muito bom este texto e aqui me fez lembrar dos perrengues que meu bairro (Balneário dos Prazeres ou popularmente conhecido como Barro Duro) passa por ser tão malcuidado.

Curiosamente, moro também no Laranjal, mas no caso é a praia principal de Pelotas, minha cidade, que é tão maltratada pelo poder público a ponto de deixar atirado assim como todos os outros bairros.

Aqui o problema nem tanto é a água, mas a luz. Só pra te dar uma ideia da situação, Eliane, em algumas cidades aqui da Zona Sul do Rio Grande do Sul estão há 21 dias sem luz devido a um forte temporal que caiu na região. Tudo por incompetência da CEEE Equatorial que não faz o trabalho como deveria.

E sem luz não há água. E sem água não há comida. E sem os dois combinados não há vida.

Solidarizo com sua indignação. Este é o preço que pagamos por acreditar na lorota chamada privatização.

É isso. E viva nosso amigo Krenak que viu de forma certeira o que acontece com a gente. Não comemos salada de dinheiro, nem bebemos suco de moedas, mas acabamos vomitando todo o lixo que despejam na gente.

No fim, o corpo paga por tudo.

Um grande abraço e até a próxima.

Mario, também solidarizo com a sua dor. As concessionárias de energia mantém seus lucros e nos devolvem o que? O mínimo que se espera é um serviço de qualidade.
Ano passado Niterói sofreu com a Enel, tivemos manifestações, pneus queimados bloqueando as estradas. Recentemente foi o centro de São Paulo mais de uma semana sem luz.
Como Pelotas está reagindo?

Olá, Elaine. Pelotas está reagindo com indignação a esse descaso inclusive com fortes protestos fechando as ruas daqui e outra coisa que não te falei no comentário é que ainda tem alguns pontos da cidade sem luz desde aquele temporal de 21 de março. Inclusive um dos postes perto da minha casa está mais envergado que a torre de Pisa. Até chamei jocosamente de “poste de Pisa”.

E em Arroio Grande, uma cidade próxima da minha, o pessoal inclusive invadiu o prédio da Equatorial pra protestar contra toda essa demora e só depois disso é que foram atendidos pelo pessoal da Equatorial.

É aquela história. Enel e Equatorial parceiras na incompetência e no descaso com os itens mais básicos para um ser humano viver: agua e luz. E nem vou falar de telefone aqui pra não ficar mais indignado.

Por hora é isso. Um grande abraço e até a próxima.

Li de um só fôlego. Senti a denúncia feita com conhecimento e o desejo de mostrar a indignação pelo fato acontecido. PARABÉNS!

Adorei o texto Elaine, as verdades que você vai nos contando. Triste demais esse descaso que acontece em Laranjal com a água, em São Paulo com a ENEL, aqui na minha cidade com o corte desenfreado de árvores autorizado pelo poder público. Krenak está, infelizmente, coberto de razão…

Pois é, Mari. Sem proselitismo político, mas vemos que nessas horas, é o Estado que assume o ônus que as concessionárias não se mexem para arcar. Uma reformulação na política de concessões urge. Uma reforma do nosso olhar que se conforma tb. Seguimos juntas!

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