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Vilão

Eu amo vilões. Desde os vilões dos filmes da Disney aos das séries atuais. O vilão é o personagem que define o herói, diz o autor Dan Brown (O Código Da Vinci) e para mim, o personagem mais divertido de uma estória. Em qualquer gênero narrativo, um antagonista é imprescindível para a incrementação da trama.

O vilão é um personagem que se opõe ao herói em muitos sentidos e ideais, uma pessoa que o principal propósito é piorar a problemática de caráter do nosso protagonista. Temos muitos exemplos de antagonistas na cultura pop, Hannibal Lecter (O Silêncio dos Inocentes), Voldemort (Harry Potter), Darth Vader (Saga Star Wars), entre tantos outros. Todos eles têm suas características e suas motivações, mas aqui não vim falar de nenhum desses, vim falar de um verdadeiro monstro, trazido pela primeira vez ao mundo numa peça escrita por um dos maiores escritores da literatura mundial, William Shakespeare. Esse vilão é: Ricardo, Duque de Gloucester, protagonista da peça Ricardo III (1592-1593).

Ricardo III é uma das peças que faz parte da segunda quadrilogia que Shakespeare escreveu sobre a grande Guerra das Duas Rosas entre as Casas de York e Lancaster da Inglaterra. Baseada em fatos reais, a tragédia conta a jornada sangrenta de Ricardo ao poder e sua ruína.

Okay, eu falo tudo isso, mas o que ele tem para você considerá-lo um monstro?

Que bom que você perguntou. 

CAPÍTULO I: Vingança

Já ouviram falar da frase “Pessoas machucadas machucam pessoas”? Se não, guardem ela porque fará sentido no futuro.

Talvez uma das características mais marcantes de Ricardo é a sua feiura. O personagem é descrito como portador de deformidades, sendo motivo de desprezo para as pessoas que fazem parte de seu círculo social.

Por ser feio, Ricardo não é bom em muitos estágios da vida como amor e batalhas, diminuindo seu prestígio na sociedade. Com isso, o que lhe falta é ser rei.

Essa luta intensa pelo trono é um exemplo de sua ambição extrema mas também é um exemplo da frase “Pessoas machucadas machucam pessoas”. Ricardo quer se vingar de todos aqueles sendo rei, mostrando o poder que ele tem. Ele quer provar que deve ser temido e tratado como superior. E para conseguir realizar seu desejo, usa sua maior e mais perigosa arma: a retórica.

CAPÍTULO II: Retórica

Durante a leitura da peça, dá para perceber que Ricardo fala e articula seus pronunciamentos muito bem. Mesmo com todos os seus defeitos, ele ainda consegue dominar uma pessoa, esse sendo seu principal e único talento.

Sabendo que nunca irá assumir o trono através das formas convencionais, ele utilizará a oratória como ferramenta para alcançar o seu objetivo.

Um bom antagonista é um bom ator. Ele sabe como disfarçar seus interesses e como “hipnotizar” uma vítima e subjugá-la aos seus pés, fazendo o que o dominador quer, sem ao menos ter ciência do fato. E esse é o perigo da retórica.

Ricardo compreende o funcionamento desse poder e o domina com maestria. Alguns exemplos do personagem atuando a maliciosa aptidão: Ricardo consegue se casar com Lady Anne, viúva do Rei Eduardo IV, causando um profundo arrependimento em Anne por ter cedido ao feitiço do Duque; Uma das etapas do plano de Ricardo para assumir o trono era matar o irmão do meio, o Duque de Clarence. Com isso, o Duque de Gloucester prender o irmão numa torre e convence ele que quem o colocou lá foi o irmão mais velho, o Rei Eduardo IV. Depois da morte de Clarence, Ricardo manipula a situação para que Eduardo se sinta culpado pela morte do irmão, mesmo sem ter feito absolutamente nada.

Outra cena que mostra a oratória dele em ação é uma do Ato IV, onde Ricardo discute com Elisabeth de Rivers. Depois de todos os atos sangrentos que o personagem comete, ele tenta persuadir Elisabeth a conceder a mão de sua filha em matrimônio. Contudo, Elisabeth, furiosa, resiste e relembra todos as crueldades que Ricardo realizou. Ele até tenta justificar seus crimes dizendo que homens fazem coisas impensadas que depois se arrependem (coincidência?).

Ricardo: Dizei que hei de adorá-la para sempre.

Elisabeth: E esse ‘sempre’, quanto durará?

[…]

Ricardo: Conta-lhe então apenas que eu a amo.

Elisabeth: Mentira simples não é bom estilo.

[…]

Ricardo: [Juro] Para mim mesmo.

Elisabeth: Não passa de um vilão”.

Ricardo III, Ato IV, Cena IV

Vendo esses trechos, já dá para deduzir que Ricardo está perdendo um pouco desse poder, consequência da próxima característica que será abordada no capítulo a seguir.

CAPÍTULO III: Dissimulação

Não teria como falar de Ricardo sem mencionar a característica que para mim é a mais memorável. Esse traço de sua personalidade é o que o assemelha a outros grandes vilões do Bardo, como Macbeth e Iago (Otelo).

A dissimulação é a ação de ocultar sentimentos ou interesses. Palavras semelhantes: hipocrisia, fingimento, disfarce.

Vou te propor um desafio. Liste em sua cabeça vilões/antagonistas que não sejam traiçoeiros ou falsos. Conseguiu? Bem difícil, né? É complicado mesmo pensar em um antagonista que não “apunhale pelas costas”. Esse padrão se mantém em muitos antagonistas, como o Lobo Mau da Chapeuzinho Vermelho ou até mesmo os vilões da Disney. Voltando a Shakespeare, a dissimulação esteve em muitos trabalhos do dramaturgo e aqui em Ricardo III ela está muito forte, imortalizada na forma do Duque de Gloucester.

Ricardo, desde a primeira cena à última, soube como se disfarçar no meio da multidão. Como eu disse antes, ele é um bom ator. Em várias cenas da peça, vemos em diálogos dele com outros personagens, suas duas faces: a primeira, boa, prestativa e mansa; e a segunda, manipuladora e sempre atenta a tudo, só esperando o momento certo para atacar.

Suas relações e amizades não são genuínas. Ricardo encara todos que o rodeiam como peças de um grande tabuleiro com apenas um propósito: serem usados. E assim que a peça se torna inútil, o cabeça a joga fora, como aconteceu com Buckingham, aliado de Duque em sua jornada ao trono, que foi descartado por ele, após a posse.

O fim para todo dissimulado é o fatal descobrimento, no qual o caráter da pessoa e seus interesses são revelados, não muito distante do fim do nosso protagonista, que embarca numa batalha e acaba morrendo em campo.


No meu ver, o final de Ricardo se deu pelo fato de como ele estava cego pelo próprio veneno. Nesse ensaio, eu tentei abordar uma visão mais humanizada do personagem, coisa que não nos é apresentada na peça, considerando Ricardo como um ser mau por natureza.

Depois de muito tempo sendo desprezado, Ricardo colhe uma raiva que estava crescendo todo dia e deixa o dominar, cujo único objetivo era vingança. Como eu disse no primeiro capítulo, Ricardo define a frase “Pessoas machucadas machucam pessoas” e assim que ele volta a enxergar claramente, já era tarde demais e não havia outra opção senão aceitar seu destino de vilão e ser derrotado pelo herói.

Referências bibliográficas

Shakespeare, William. (2013). Ricardo III. Publicado pela Saraiva & Nova Fronteira pelo selo Saraiva de Bolso

Introdução à Tragédia do Rei Ricardo Terceiro. Publicado pelo blog ShakespeareBrasileiro (shakespearebrasileiro.org)

3 respostas em “Vilão”

Excelente forma de conhecer um pouco mais dessa obra! E concordo com você, no dia que eu conseguir inventar um vilão porreta de verdade vou me considerar uma escritora de sucesso 😀

Belo ensaio, J.C.! Eu diria que a outra face da vingança, que você muito bem citou como inerente aos vilões, é o rancor. Vilões são, a meu ver, movidos pelo rancor e por ele motivados a agirem com dissimulação e com uma retórica convincente.

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