A verdade é que ninguém nasce herói. Mas isso não nos impede de salvar o mundo de vez em quando. – (pág. 29)
E se vivêssemos em um Brasil onde um governo com ares de ditadura proibisse qualquer manifestação artística que fugisse dos padrões considerados cristãos? Livros proibidos, teatros sendo fechados; pessoas sendo espancadas e mortas no meio da rua simplesmente por ser quem são, por sua cor de pele, pela sua identidade de gênero, por sua sexualidade. Essa é a realidade construída por Eric Novello em sua novela distópica Ninguém nasce herói.
Tendo sua primeira publicação em 2017, o livro traz como protagonista e narrador o jovem Chuvisco que vive em um Brasil que não é mais seguro para morar. Onde o medo espreita a cada esquina de São Paulo. No poder temos o chamado Escolhido, um líder religioso que semeia ódio com as mais variadas minorias existentes e que possui uma horda grande de seguidores cegos e perigosos. Porém, Chuvisco e seus amigos não pretendem apenas abaixar a cabeça e aceitar as coisas como são. Juntos eles vão procurar maneiras que lutar contra essa realidade, começando com a distribuição de livros proibidos pelos arredores da cidade.
Distopias sempre tem o poder de nos assustar com os futuros possíveis que a nossa sociedade pode nos levar. Superpopulação, desmatamento em massa, robôs, vidas cada vez mais artificiais. Entretanto, a diferença na história apresentada por Novello é que ela não está tão distante da nossa realidade atual. O medo deixa de ser apenas um sentimento passageiro para se tornar uma verdade. Ainda mais com os recentes acontecimentos na sociedade e política brasileira desde as últimas eleições da presidência. Basta abrir o jornal, ligar o rádio ou estar num almoço de família para entender.
Por causa dessa semelhança, algumas pessoas podem se sentir receosas com a leitura e sentir um pouco de desconforto. Mas a maneira como Novello trabalha com a narrativa torna o livro agradável, mesclando momentos de tensão e pavor com momentos de alegria e festa. Chuvisco e seus amigos procuram achar seus escapes dos problemas que os cercam, apoiando uns aos outros e tentando levar a vida da melhor maneira possível. O próprio leitor pode acabar esquecendo que por fora do apartamento do protagonista, há um Brasil pegando fogo, e sentar no sofá junto com os personagens para uma boa xícara de café.
Outra manobra interessante do autor em sua escrita são as catarses criativas de Chuvisco. São episódios dentro da história em que o garoto entra em crises ansiosas e começa distorcer a realidade a sua volta, através da sua imaginação – muito influenciada pelos quadrinhos de super-heróis. Por ser uma escrita em primeira pessoa, ficamos imersos na mente de Chuvisco e, assim como ele, começamos a duvidar do que é verdade e do que é fantasia. Algo que combina perfeitamente com a ideia de narrativa distópica. As cenas de briga e de conflito acabam, também, sendo amenizadas, de certa forma, por causa desses episódios. Temos pessoas se transformando em robôs com armaduras cintilantes, temos mochilas a jato e espadas mágicas. Pode-se dizer até que a imaginação de Chuvisco seria uma forma de tornar o mundo real em algo suportável nos momentos em que tudo parece ruim e assustador.
O desfecho de Ninguém nasce herói foge do pessimismo de obras como 1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, se aproximando mais da ideia de esperança e recomeço apresentada no livro Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Chuvisco e seus amigos andam juntos no último protesto contra o governo, fazendo suas vozes serem ouvidas. Vemos também um crescimento e mudança do próprio protagonista, ele parece mais altivo, mais corajoso. Ainda temos algumas tragédias no meio do caminho, porém, ainda é possível terminar a leitura com um sorriso no rosto que carrega alívio e uma saudade carinhosa daqueles que não veremos de novo.
Quebrando um velho hábito, me permito ter esperança. É justamente a esperança de que não estamos sós que vai nos levar à vitória. O resultado de nossa coragem é uma mensagem que vai sobreviver ao tempo e ao que existir do outro lado do rio. – (pág. 29)
Por fim, posso dizer com certeza que é um livro excelente – além de necessário em tempos como os nossos –, com uma narrativa que seduz seu leitor a ficar até o final e nos traz um misto de sentimentos; e com personagens cativantes que amamos como se fossem nossos amigos. Há obras que nós devoramos e há obras que nos devoram. Ninguém nasce herói foi um desses que me devorou até a última página. Talvez a única ressalva a ser feita quanto à obra, seria a “pouca” exploração política no universo. Não que ela seja inexistente e que não tenha sua força dentro do texto, apenas creio que falta uma abordagem mais detalhada do tema.

Me chamo Raquel (de Mello) Soares, tenho 21 anos e me formei em Escrita Criativa pela PUCRS no ano de 2019. Escrevo universos desde que me entendo por gente e atualmente trabalho como revisora e ilustradora freelancer. Já possuo cinco contos e uma poesia, publicados cada um em uma antologia diferente, e um conto publicado na Revista Literomancia. Além da escrita e dos desenhos, também me aventuro como youtuber com o meu canal Palavras Salgadas, no qual converso sobre escrita e literatura.
Uma resposta em “Ninguém nasce herói, Eric Novello”
Boa resenha!! Como a arte imita a realidade, não é mesmo??