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O mundo acabou ontem

— Vamos jogar um jogo! — gritou Ana de repente.

— Lá vem ela… — sussurrou Elisa. Ela amava Ana, todos nós amávamos, mas às 6 da manhã era difícil ser simpática. Especialmente quando Ana começava a agir como se ainda fosse 19h e a festa estivesse apenas começando.

— Vamos lá pessoal, ainda é cedo! — disse Ana, eufórica. Quem tinha deixado aquela garota beber? Ela se levantou e começou a reunir as poucas pessoas restantes, pedindo a todos que se sentassem num círculo no meio da sala.

— Pobrezinha, ela não quer que a noite termine. — comentou Paulo, sentado ao nosso lado. Elisa e eu trocamos um olhar; sabíamos que Paulo tinha um quedinha por Ana, então sempre fazia tudo que ela queria.

Ninguém tinha energia pra contrariá-la, então logo todos estávamos sentados no bendito círculo. Éramos um grupo triste. A festa foi boa enquanto durou, sim, mas naquele momento, as oito pessoas que ainda permanecíamos lá não estávamos com o melhor aspecto. Rostos cansados, maquiagem borrada, roupas amassadas, hálitos repletos de álcool e olhos sonolentos indicavam que todos preferíamos estar em nossas casas dormindo do que jogando o jogo bobo que Ana ia sugerir. Mas não, lá estávamos nós, com Ana em sua festa sem fim. Definitivamente a amizade está superestimada…

— Por favor Ana, por favor, deixa a gente ir para casa! — grunhiu Elisa, e seu mau humor era evidente em cada sílaba. Alguns de nós movemos a cabeça concordando, mas Ana estava muito bêbada para perceber nossa infelicidade. Ao invés disso, ela riu como se Elisa tivesse contado uma grande piada.

— Lis, como você é engraçada!

Nós suspiramos. Não tinha jeito, a festa ia continuar.

— Tudo bem, Aninha. Que jogo a gente vai jogar? – perguntou Paulo, o único que parecia verdadeiramente interessado no que Ana tinha pra dizer.

— Obrigado pelo apoio, Paulo, eu sabia que você ficaria animado!

— Arranjem um quarto, vocês dois. – disse e o rosto de Paulo ficou vermelho-tomate, mas Ana apenas franziu a testa.

— Por que iríamos para o quarto, Tom, se a festa está acontecendo aqui? Não seja bobo! – respondeu enquanto se sentava solenemente no meio do círculo.

— Nem toda a bebida do mundo vai ajudar o Paulo a superar a friend zone. – sussurrei e Elisa deu uma gargalhada.

— Shh! Prestem atenção! Vamos jogar um jogo chamado “O mundo acabou ontem”.

— Isso é um jogo de verdade ou você está inventado agora, Ana?

— Claro que é um jogo de verdade, Elisa! – gritou a dona da festa, ofendida. Elisa estreitou os olhos, desconfiada.

— Ah, é? Onde você aprendeu esse jogo então?

— Eu… eu já joguei antes. Com o Dani. – de repente, Ana parecia sóbria e vulnerável. O sorriso dela se desmanchou e seus olhos se abriram como platos, assustados.

— Ótimo trabalho, Lis! Passamos a noite inteira tentando evitar o assunto Dani e no final da noite você consegue estragar tudo. – reclamou Paulo enquanto uma das meninas se aproximava de Ana e lhe perguntava se precisava de alguma coisa.

— Não, não, relaxa. Estou bem. Não se preocupem. Vamos brincar. – disse Ana, elevando a voz e forçando um sorriso. – Vamos jogar, Lis?

As duas amigas olharam uma para a outra e Elisa cedeu. É claro que ela ia jogar. Ana precisava de seu apoio, afinal de contas.

— Ok, então, “O mundo acabou ontem”. É um jogo muito fácil, na verdade. Imaginem que somos sobreviventes de alguma merda que aconteceu e causou o fim do mundo. Cada um de nós tem que explicar o que houve, como o mundo acabou. Os outros escutam e fazem perguntas. No final, depois de escutar todas as histórias, vamos votar qual foi a melhor razão para o fim do mundo. A melhor história ganha.

— É isso? É esse o jogo? – perguntou Paulo, um pouco decepcionado.

— Sim. Vamos lá, pessoal, é divertido! Serve pra melhorar nossas habilidades de comunicação e criatividade. — explicou Ana depois de ver nossas caras frustradas.

— Ok, eu começo. – disse Elisa. — Tudo começou em uma festa, num apartamento em São Paulo. Foi bom por algumas horas, mas logo a anfitriã da festa não deixou ninguém ir embora. Sua amiga, que estava um pouco louca, ficou tão cansada que acidentalmente incendiou o lugar. O fogo era tão forte que as chamas começaram a se espalhar e logo a cidade inteira estava queimando. Poucas pessoas sobreviveram e São Paulo foi transformada em cinzas.

Alguns de nós aplaudimos, mas Ana não pareceu muito satisfeita.

— Como um incêndio poderia destruir o mundo inteiro?

— Quem sabe? Poderia se propagar com o vento e essas coisas. E quem se importa? Meu mundo está aqui em São Paulo, a partir de Guarulhos já não me preocupa o que acontece — respondeu Elisa, arrancando risos do grupo.

— Vai Ana, é a história dela. Deixa quieto — falei e Ana deu de ombros.

— Ok, boa sorte, Lis. Quem é o próximo?

— Eu, eu! — disse Paulo com um olhar espirituoso em seu rosto. – Ok, acho que já sei. Houve uma disputa internacional e vários países se dividiram em duas facções. As diferenças entre eles culminaram em uma guerra mundial. Numa noite terrível, essas nações começaram uma batalha nuclear que causou a destruição do mundo.

— O que é isso, os anos 90? Algum tipo de Guerra Fria Reloaded, Paulo?

— Ué, é mais provável do que o teu incêndio misterioso, Elisa.

— Parece o roteiro de algum filme tipo Rocky, mas realmente ganha da sua história do fim do mundo, garota. — Opinei e Paulo me dedicou um joinha, agradecendo o apoio.

— De que lado você está, Tom? — perguntou Lisa, tentando parecer irritada, mas seu sorriso a entregava. – Por que não vai você agora então, senhor crítico?

— Tá, vamos ver… Bom, eu tenho uma idéia. Nós amamos a Netflix, certo? — todos acenaram com a cabeça. — Sim, nós amamos. Mas imaginem que os caras por trás da Netflix não são tão simpáticos quanto parecem. Em vez de um grupo de empresários da mídia que querem que as pessoas sejam felizes e se divirtam com suas séries e filmes, e se eles forem gênios do crime que durante anos nos deixaram viciados em seus programas apenas para realizar seu plano maquiavélico? Um dia, eles vão transmitir sua última comédia de lavagem cerebral que transformará todo o público em zumbis comedores de carne. Então, eles usarão esse exército de zumbis para instalar seu domínio mundial sobre os seres humanos restantes e o mundo como o conhecemos vai terminar.

— Eu sabia que você ia falar de zumbis! É muito você, Tom! – gritou Ana, rindo alto e aplaudindo. Elisa e Paulo não estavam tão convencidos.

— Dá um tempo, isso é ainda pior do que a minha história! Por que os caras da Netflix iriam querer destruir o mundo? – questionou Elisa.

— Além disso, não creio que seja possível converter alguém em zumbi com um programa de TV, Tom. – criticou Paulo.

— Pode não ser a história perfeita, mas vocês ficaram pareciam bem interessados enquanto eu falava. Deviam ter visto suas caras!

— Isso é verdade. Foi uma boa história. – disse Ana.

— Provavelmente não tão boa quanto a que você deve ter planejado compartilhar com a gente, Aninha. Por que não vai você agora? – sugeriu Paulo, mas Ana sorriu amarelo.

— Ah não, pode ir outra pessoa.

— Vamos, anfitriã, é a sua hora de brilhar! Não seja tímida. Qual é a sua história do fim do mundo? – perguntei. Ana me encarou, pálida de repente.

— Eu não tenho uma história. Quero dizer… Talvez eu tenha. Meu mundo meio que acabou recentemente, vocês sabem.

O grupo ficou em silêncio. Esse era o momento que passamos a noite tentando evitar. Mas talvez fosse hora de falar sobre isso. Ana continuou.

— Meu mundo explodiu. Metaforicamente falando, é claro. Mas a dor é real. Depois de tantos anos lutando contra essa doença horrorosa, eu perdi meu Dani. Ele era meu mundo. E agora ele se foi. Me sinto tão sozinha… Sinto como se estivesse sobrevivendo um dia após o outro. Já se passaram meses e decidi dar essa festa para me sentir bem comigo mesma, para me sentir normal de novo. Mas eu não consigo. Não dá. Eu posso dançar, beber, fazer meus amigos jogarem jogos estúpidos, você estava certa, Lis, é um jogo bobo, mas nunca vou voltar a ser quem eu era. Meu mundo nunca vai ser igual ao que era antes.

Foi a primeira vez que vimos Ana falando de Dani sem chorar. Mas o tom de voz seco e seus olhos sem vida eram piores do que as lágrimas; ela parecia tão resignada, tão infeliz… Como se realmente acreditasse no que tinha dito.

Ninguém sabia o que fazer. Paulo encarava o chão, sem palavras, e Elisa parecia prestes a chorar. Eu também estava tremendo, mas fiz um esforço e peguei a mão da minha amiga.

— Acho que falo em nome de todos aqui, de cada um de nós, sobreviventes como você, querida Ana. Ninguém pode vencê-la neste jogo, garota. Sua história de fim de mundo é realmente a melhor de todas

No início, Ana pareceu chocada com minhas palavras, mas logo começou a rir e lá estava nossa amiga de volta, a garota feliz, sorridente, com seus olhos alegres e seu belo coração. Começamos a gargalhar com ela, por ela, e enquanto o sol começava a nascer e o primeiro raio nos iluminava pela janela, todos nos sentíamos mais leves. Eu abracei Ana e sussurrei: “Você pode contar sempre conosco”. Ela apenas me abraçou de volta, acenando com a cabeça.

Os outros se juntaram a nós no que se transformou em um abraço grupal. Até hoje, foi uma das melhores festas que eu já fui. Tudo por causa dessa amizade superestimada.

Uma resposta em “O mundo acabou ontem”

Excelentes janelas e de duas abas abertas para fora. Não atrapalham os transeuntes e permitem, também, que eles vejam o interior. O cotidiano é o palco e os seres, os inventores.
Boa iniciativa!

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