RESENHA
Eliana Alves Cruz – Ed. Malê
O crime do Cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz, é uma viagem ao início do século XIX no Rio de Janeiro, época do nascimento do Império no Brasil. Não há histórias sobre a nobreza, os heróis da futura independência, as coxias do poder ou alguma revelação palaciana. A não ser pelo contexto, pouca coisa remete aos grandes eventos. Nesse livro, o que importa é a história daqueles que ficaram à margem da história oficial mas que, ao mesmo tempo, possibilitaram que ela existisse. É um resgate daqueles que por toda vida pegaram no pesado, foram escravizados e sustentaram a base sobre a qual erigiu-se nosso modelo de Brasil: escravista, patrimonialista, parasitário do poder e racista, profundamente racista.
O mestiço Nuno, um típico malandro do século XIX, beberrão e ateu, é o personagem que nos apresenta a história do crime do Cais do Valongo que casualmente ocorre perto de sua casa, mas do qual ele não conhece nem motivação nem perpetradores. Trata-se do assassinato de Bernardo, um próspero e inescrupuloso comerciante com pretensões ao círculo mais restrito da sociedade da época.
Dois narradores intercalam os capítulos. Nuno é quem apresenta o crime a partir da narrativa escrita de Muana, essa, personagem principal do livro, uma escravizada de origem moçambicana e propriedade do comerciante morto. Letrada, é ela quem permite a Nuno, via publicação em um jornal, desvelar os meandros da história que culmina no assassinato de seu dono, mas não só. Descreve também a sua própria história desde Namuli, em Moçambique, o embarque em Quelimane, a travessia do Atlântico e os muitos mortos pelo caminho, tanto de estranhos como de familiares seus.
Romance histórico é sempre uma árdua tarefa. Requer muita pesquisa, dezenas de milhares de páginas lidas para se produzir apenas algumas dezenas delas. Mas Eliana Alves Cruz o faz com maestria, não se atendo apenas à fidelidade histórica. Como Marianno, escravizado que tece a mortalha de seu dono, Eliana constrói de modo paciente e complexo a trama, alinhavando fatos e reflexões, redimensionando o que à primeira vista parece ser apenas um romance histórico-policial. Há que se ter muita atenção à alternância dos personagens e observar as nuances dos personagens principais, o malandro Nuno e a inteligente Muana.
Muito mais que um crime, o livro traz a narrativa do modo de vida do Brasil do início do oitocentos, mas a partir da voz de uma escravizada, subvertendo a lógica dos relatos dos livros de história. Em vez da percepção da historiografia tradicional que trata das grandes narrativas políticas e econômicas, as relações de base escravagista da época são apresentadas pelos olhos de Muana a partir da sua perspectiva cultural, de sua cosmogonia, de sua ancestralidade e de suas relações afetivas com os outros escravizados. Ciente da sua condição de mercadoria, nem por isso se rende ao dominador, trazendo a verdade do crime à tona de um modo inteligente e inesperado.
Eliana Alves Cruz, negra, constrói uma protagonista negra para recontar a história da escravidão a partir da perspectiva dos invisibilizados e silenciados, com todas as mazelas que não a fazem sucumbir nem desistir da verdade, seja de que modo for. A autora acaba por se sintonizar com o que há de mais moderno frente às demandas de assunção do papel de protagonismo do negro no Brasil atual. Resgate da história via inventidade literária para uma reflexão das relações raciais na atualidade.
Assim, o livro vai se desvendando ao longo das páginas e enredando-nos à trama, via mortalha de Marianno que é tecida com a paciência do prato que deve ser comido frio.
Acabamos por ouvir múltiplas vozes. O pássaro Namuli Apalis, desde a África, Mr. Toole, Umpulla, Nuno, Faruk, algumas do mundo dos vivos, outras do além. Pois essas últimas tem papel significativo tanto para a narrativa quanto para Muana, a heroína, em mais um resgate de algo tão caro às tradições africanas: a ancestralidade e a comunicação com os mortos.
Apenas um crime no Cais do Valongo? Não, o livro se chama O crime do Cais do Valongo.

Carioca, 56 anos (ainda), casado, gosto de escrever prosa, curta e longa. Pai, avô e vascaíno, a vida só me dá alegrias, a não ser pelo último item
Lancei ano passado “Nhorrã, rastros, caminhos e descaminhos da escravidão”, um romance histórico sobre a passagem do trabalho escravo para o dito livre, no final do século XIX. Tenho colaborado regularmente com a revista eletrônica Literato Dente de Leão e estou escrevendo um novo romance histórico, sem deixar de produzir histórias curtas, por demanda ou inspiração.